segunda-feira, 16 de maio de 2011

"FIDIQUEM"?






Carmen e de quem era filha, João Pessanha
Esta era a pergunta mortal. Não há quem, nascido em Campos, lá pelos meados do século passado (Será assim ainda hoje?), não se lembre dela. Era só haver um novo amigo ou namorado a ser apresentado à família, que o indefectível fidiquem vinha certeiro, como incontestável instrumento separador de joios e trigos. Sim, porque se não se soubesse de quem era filho o candidato a entrar naquele novo terreno, toda a gama de preconceitos e temores era posta em ação contra o intruso que se pretendia digno de entrar naquela “nova morada”. Fosse filho de alguém conhecido, ótimo!, estava dada a senha para que a aceitação viesse pronta, assim como um simbólico cartão magnético capaz de abrir qualquer agência da instituição bancária da qual é correntista (Não deve ser à toa que o exemplo que me surge tem a ver com finanças...). Mas se o coitado não fosse filho de alguém conhecido, aí só o tempo diria se teria como adquirir o passaporte seguro para sua pretensão de ter direito a se chegar ao mundo dos que sabiam de antemão o poder de quem eram filhos. Na verdade, mais do que uma simples expressão típica do linguajar local, o fidiquem indicava um jeito extremamente conservador e segregacionista, indicado para manter “cada qual em seu lugar”, reduzindo as chances de uma interessante e democrática diversidade.

Lembranças da infância

O BAILADO DAS BALAS

Na esquina lá de casa com a Rua da Baronesa tinha uma venda onde eram vendidas balas de goiaba, umas balas duras como nenhuma outra e tão deliciosas a ponto de provocar esta viva rememoração. Sua cor era de goiaba mesmo, eram meio brilhosas, quadradinhas, esquisitas, diriam os argentinos...

Mas neste texto que brota sei lá de que rincão de minha história, a bala de goiaba entra mesmo só para anunciar o que virá, tal qual uma hipotética participação dos nossos Paralamas abrindo um show dos Rolling Stones, antes dos ingleses cantaram, para delírio geral, a sua histórica Satisfaction



Pois os Rolling Stones a que quero me referir aqui são o bailado que as habilidosas mãos do balconista da venda da esquina faziam para embrulhar as balas compradas pelas crianças da vizinhança.

O papel era acinzentado, rústico, meio manchado, até lembrando os reciclados de hoje em dia, e era puxado de um tipo de bobina serrilhada, grandona, postada atrás do balcão, de onde o artista puxava e cortava o pedaço que queria, maior ou menor, de acordo com a quantidade de balas a embrulhar.

Postas as balas no centro do papel[i], dava-se início ao bailado. Com ambas as mãos, como se fosse uma daquelas donas de casa argentinas processando suas rechonchudas empanadas, ele vinha dobrando as abas do papel, uma após outra, como uma empanada mesmo, até chegar ao último ato: era quando o moço, artista anônimo de minha esquina, de quem não me lembro a face, apenas o gesto, lançava o pequeno embrulho em volta dele mesmo, numa volta inteira pelo ar, firmando-o pelas últimas dobras já feitas, uma em cada mão. O resultado era um perfeito pacotinho de balas, com os dois “chifrinhos” enroscados, milagrosamente surgidos como seu derradeiro fecho. Era coisa de Terceiro Ato mesmo. Só que, para mim, ali o cisne sempre revivia, como se contássemos, como fundo musical, com o som da mais cristalina execução do eterno Tchaikovsky. Pura expressão de uma Arte singela, hoje viva apenas em minha memória.

A paixão que passei a ter pelo que são capazes de fazer as mãos humanas, com certeza, surge em grande medida daquele gesto – para o moço, tão corriqueiro –, e faz dele uma de suas mais nobres inspirações.





[i] Comentário de Rosinha – “E não eram só balas, também açúcar, farinha... eram embrulhados assim. Eu me lembro de abrir o pacote do açúcar e da farinha e ir misturando uma e outra, na própria mão, saboreando a mistura até chegar lá em casa.”