sábado, 9 de abril de 2011

E agora?


Escrito em 9 de abril de 2011.


                                                                                                                      
                                                                              “Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer das
causas do desespero humano, não teremos o direito 
                                                                                    de tentar a supressão dos meios pelos quais o
 
homem tenta se livrar do desespero.” 

                                                                                    (Antonin Artaud, citado por Arthur Dapieve, 
                                                                               em 18/11/05, no Segundo Caderno, O GLOBO)


De nada adianta me lembrar do meu aluno que, há décadas atrás, fui visitar na prisão, junto com minha amiga, também professora, quando soube que ele havia sido preso por tráfico de drogas. Tampouco me alivia a lembrança da família dele, com a qual fomos estar em seguida, num subúrbio de Niterói, dando apoio e tentando ver do que precisavam naquela hora tão surpreendente em suas vidas... Havíamos saído do Conselho de Classe da escola em que trabalhávamos e o diretor havia se pronunciado, solenemente, sobre o drama da escola (não do menino), com a descoberta de seu envolvimento com drogas. Mas, ao contrário de nós, estupefatas diante de circunstância tão inusitada, ele, o diretor, estava tranquilo, o flagrante não fora dentro da escola, assim sendo, a instituição estava liberada de culpa.  Céus! Até hoje me causa náusea, mas era isso mesmo: o temor do “cidadão” era diante de algum respingo vir a macular a imagem da escola e ele, indicado para o cargo pelo político da ocasião, vir a perder os seus caramimguás, exígua gratificação a que tinha direito a cada final de mês.  

Presunçosa, me senti “a” educadora, diante daquele sujeito egoísta e pouco sensível. Mas, hoje, ante a tragédia, me olho de frente e não adianta: também sou cúmplice pela desgraça deflagrada pelo jovem das manchetes destes dias ter se tornado um assassino e matado outras tantas vítimas, além dele próprio, sob a fúria de sua arma de fogo. Os gritos que dera antes (Onde os terá dado? Quem os terá ouvido?) para aliviar o próprio sofrimento de vítima, nós, educadores, não os ouvimos. Simbolicamente eu também estive surda e alheia aos horrores pelos quais passou esse menino. Pura obra do acaso não ter sido um aluno meu, de carne e osso, quem veio a aterrorizar a todos nós, pela fatídica inauguração de um crime tão bárbaro, até ontem totalmente distanciado de nossa alardeada “índole pacífica” de brasileiros. Quem garante que não poderia ter sido de verdade um de meus alunos? Quem me assegura que algum deles não padece, talvez não de um mal tão devastador, mas de dores que o faz menos humano do que poderia e pode ser?

Pois o império também isso nos tirou, globalizando a monstruosidade. E eu não vi que tal tragédia se anunciava, silenciosa e célere.

Perdão, alunos meus, que sofreram sem que eu os tivesse ouvido e entendido! Voltei-me para outras franjas do cotidiano e não vi o seu olhar, não atentei para sua angústia, não ouvi o seu pedido de socorro. Pensei em Filosofia, pensei em Educação, e não me voltei para você, diante de mim, com sua vida a lhe rasgar o peito, fazendo- o infeliz à beira de uma mórbida necessidade de vingança. Afinal de contas (tento aqui me defender), a me corroer o peito, eu também vivia minhas próprias dores...

Fora da escola, bem que lutei junto a meus pares por melhores condições de ensino e por melhores salários. Pretendi ter menos alunos em turma, como forma de garantir uma maior atenção a cada qual e uma menos árdua tarefa de educar. Demonstrei meu inconformismo quando, no início de cada ano, minhas turmas tinham em torno de 50 alunos e a coordenação da escola, diante da minha ”grita”, me pedia calma, alegando que vários deles iriam desistir e a turma passaria a ter um número mais razoável de integrantes, naturalizando, covardemente a evasão escolar.

Mas, e daí? Nem isso nem escudar-me nos desmandos dos governos que se sucedem, cada vez mais retardando a oportunidade de virmos a ter a educação pública, democrática, de legítima qualidade social, laica e universal que é devida à população de nosso país não me tira o gosto de fel da boca nem tampouco as lágrimas renitentes do olhar.

O fato, para mim, é que três dias de luta é o mínimo. O máximo vamos ter que descobrir juntos.


Ele está no meio de nós

Escrito na manhã da chegada do presidente Obama ao Brasil

Caros amigos, Obama está chegando. "Ele está no meio de nós", dá vontade de dizer, lembrando as antigas rezas e, com certeza, associando-as ao poder que este Ele divino tem sobre nós que já o conhecemos mais de perto e este outro Ele, visitante, que nem precisa se assomar, para sabermos a extensão do seu poder diante do mundo terreno. Apesar de toda a crise, acrescento. Dá até pra se ter dúvida sobre qual dos dois tem a mais poderosa espada simbólica sobre nossas cabeças para definir nossos destinos neste mundo. Pelo menos, postando lentes contemporâneas ...

Pois Obama está chegando. Tão simpático, até charmoso, eu diria, viciada em checar nos espécimes do sexo “forte” (o mesmo de Deus e de Obama) o nível de seu fascínio perante nós, mulheres. E ainda vem esbanjando sua negritude, o que coloca nossa porção politicamente correta a percebê-lo como elo vitorioso de uma minoria a quem o Brasil, construído à base de trabalho escravo africano, tanto deve historicamente. Tudo posto, pois, para que possamos dispor nossa melhor toalha rendada na janela para saudá-lo. Assim, ele chegará e conhecerá o nosso tão propalado espírito pacífico. Houvesse mais tempo para o povo saber de evento tão relevante, talvez sua vinda se transformasse num fenômeno similar ao da visita de Marta Rocha, quando foi à minha cidade, lá pelos idos da década de 50 do século passado, provocando o maior reboliço com as gentes todas aclamando sua beleza invulgar desde o aeroporto até as ruas centrais da então ainda pequena Campos.

Pois o assunto é sério e merece um olhar menos dominado pelo que a mídia insiste em divulgar a respeito. Vejam o poema-discurso que o nosso Afonso Romano criou  e que eu acabo de descobrir esta manhã, lembrada por meu amigo Ezequiel Teodoro da Silva. Espero que cada qual se sinta representada por ele como eu.
Não deixem de assistir:


sexta-feira, 8 de abril de 2011

Nós, mulheres, e Ricardo Aguillar

Escrito originalmente em setembro de 2010

Seis e dez da tarde. Na sempre bem feita novela das seis, finalmente o príncipe encantado beija a mocinha. Que emoção! Da minha poltroninha já meio socada por aguentar o peso a cada dia, na sequência de novelas que vai das 6 até mais de 10 da noite, de repente, o ímpeto de correr até o telefone e compartilhar o sentimento feminino que sei ser tão nosso diante daquele momento mágico. Eu teria que ser rápida para aproveitar o intervalo para ligar para as amigas noveleiras para dar uma sacaneada. Ligar pra quem? O povo da UFF está dando aula. Não é o caso. Huuum, mas tem Sil, Neuza, Ine: “Acordem, meninas! Humberto Martins –  e rico! – é só na telinha”! Tento uma, duas, só a terceira  atende, e de má vontade, com voz fingida, tentando se desvencilhar do intruso que estava querendo trazê-la de volta à realidade. Só quando eu me anuncio e digo a minha intenção, explode num riso gargalhado, de quem foi pega no maior flagrante: “...Só você mesmo para ligar numa hora destas...”

O caso é que já estou quase espírita de tanto que gosto da Escrito nas Estrelas. É como diz Tia Alice: espiritismo é como Brizola. Não dá pra gente se aproximar muito, se não acredita e se apaixona...

No fundo do meu coração, uma dúvida cruel me assola: quem terá sido o meu príncipe que nesta vida de agora, este feijãozinho com arroz que eu de fato conheço, até hoje não se apresentou, muito menos com um barco daqueles, com uma jardim daqueles, com uma criadagem daquelas, chefiada pela super eficiente, bonita e boa gente Antônia, ajudada por uma Berenice que chama a nova patroa de colega sem que isso traga problemas para a relação entre ambas, e tudo isso sem que todo aquele luxo signifique a exploração dos oprimidos e a existência de uma patrão cretino, vivendo à base da mais valia dos seus empregados...  Sem falar do principal, do essencial, do fundamental: o responsável por tudo (não o chamarei aqui de patrão para não macular meu devaneio) é Humberto Martins, com sua boca, suas mãos, seus pés, sua cintura, seu pescoço e tudo mais que posso imaginar sobre ele. Bom, e o meu amor de verdade, onde andará a figuraça? Onde terá sido a minha Toledo? Campos, Campos, cidade da cana, em cada casa uma puta, em casa esquina um sacana é que não foi... Deus meu: cadê o amor que, de tão forte, atravessa existências? Sim, porque quem abalou meu coração nesta minha vidinha pobre de grande amores não veio de longe, muito menos pediu às forças do bem das outras dimensões para retornar para me encontrar. Que nada! Longe disto!  Quem veio se achegando sob a alcunha de namorado, amante, marido ou coisa que o valha, me fazendo confundir junção de necessidades com amor verdadeiro foi gente desta vida mesma. Ninguém com pinta de que “Carmen é a minha Valentina”. Só rindo!

Mais tarde, já 8 e pouco da noite, ligo para as amigas que não me atenderam, e o que suspeitava de fato aconteceu: na hora do romance, às 6 da tarde, ninguém quis ver interrompido seu sonho, por isso foi menos traumático deixar o telefone tocar e não atender. Pode?
Realmente, é mais simples a gente continuar a discutir, em novos telefonemas, se vale mais a pena votar no Eduzão ou no Gabeira, na Marina ou no Plínio (adiantará querer informar ao novo governo que queremos um governo à esquerda e deixar Dilma para o segundo turno? Parece que a danada já ganha no primeiro). Mas, também, bem feito: ela também ficará enroscada na política sem passear de barco. Pelo menos nos próximos 4 anos... Se bem que com Zé Dirceu até dá para dar uma voltinha pelo Lago Paranoá, não dá, não? Hi, acho que esta minha última opinião foi politicamente incorreta. Deve ser ainda efeito do choque de ordem em meus afetos que a novela acaba de provocar.


Na dúvida, me apresento...

Texto originalmente escrito em 2008

Sou uma professora, uma professora que foi se apaixonando cada vez mais por sua profissão à medida que descobria a sua paixão por, de alguma forma, contribuir para o mundo ser melhor. Vejo hoje, numa retrospectiva de minha vida, que foi assim mesmo: com o meu inconformismo diante da desigualdade social, desde o início do magistério, no sertão de S. João da Barra, ingenuamente, alfabetizando e cuidando de meninos e meninas pobres, até o passar dos anos, com a minha formação acadêmica (meu mestrado na UFF) e minha prática sindical (militava no SEPE, quando de sua fundação) fui casando o político com o pedagógico e cada vez mais me envolvi com a minha paixão profissional - estar com pessoas, em momentos de aula, para tentar abrir espaços para a humanização. Na verdade, sustentando meu corpo que vai envelhecendo (afinal de contas, sou uma mulher de 64 anos), há uma alma ainda de menina emocionada e alerta e não desistente (meu maior tesouro?). O amor pelo Outro já não depende de mim, o que a realidade dos despossuídos provoca em minha ação cotidiana já está fora de meu controle. E o Magistério no sentido mais amplo possível é o que apazigua meu coração...

As palavras sempre me seduziram e dedicar-me a estudar com os professores o discurso do jornal pareceu-me uma possibilidade de dar conta de minha paixão por dar voz àqueles que tradicionalmente não são ouvidos. Quando fui convidada para coordenar o programa QUEM LÊ JORNAL SABE MAIS, de O GLOBO, amparada numa perspectiva histórico-crítica de educação, estudei Bakhtin e me dediquei a compreender melhor a temática da análise de discurso. E pensei: se as empresas jornalísticas queriam formar leitores para garantir seus negócios, nós poderíamos formar leitores pelos próprios benefícios de se formar leitores, ou seja, pelo que a leitura, em si, pode trazer para cada leitor. Minha intenção junto à equipe com a qual trabalho, é de permitir que cada leitor reconheça no seu jeito de ser e viver a influência das leituras que faz, apropriando-se das raízes de sua individualidade. O que se espera é que cada leitor possa discutir os seus próprios limites e possibilidades frente aos elementos institucionais formadores de opinião que tanto o influenciam, dentre os quais se destaca, em grande medida, a Imprensa. O que se espera é que cada leitor possa aproveitar as possibilidades que a leitura traz para uma vida cidadã, indo além da simples absorção acrítica daquilo que lê, com destaque para as notícias. Marca-nos o inconformismo diante da desigualdade social e o prazer e compromisso com a realização de ações que possam conduzir, de algum modo, à justiça social. Em última instância, a expectativa que se tem é de contribuir efetivamente para a formação de seres éticos, capazes de efetuarem escolhas lúcidas nos diversos níveis de suas vidas, a partir do reencontro com a capacidade de serem autores de seus singulares modos de ler, interpretar, conhecer e interferir.

O leitor, o filme e a vida

Escrito originalmente em maio de 2009, após assistir ao filme O LEITOR

O papel cumprido pelo filme O LEITOR para evidenciar a importância de as pessoas saberem ler e escrever vale mais do que muitos discursos, ou aulas e explicações, dadas por quem quer que seja. O impulso que temos é de recomendar com grande entusiasmo que todos possam ir vê-lo com a maior brevidade possível. É pegar um agasalho leve no armário para não sentir frio no cinema (Quer coisa pior?) e procurar no jornal onde está sendo levado e rumar para lá.

Na verdade, para a população letrada fica até difícil imaginar o quanto o analfabetismo reduz a capacidade de viver dignamente para cada ser humano que se vê privado de ler em seu viver cotidiano. Sem decodificar e entender o sentido das palavras, como compreender – e enfrentar – o mundo, dia após dia, compreendendo o sentido das coisas? Desde o nome do ônibus que passa até a bula de um remédio, do bilhete mandado pela professora do filho até a orientação para fazer um simples bolo, sem saber ler, qualquer pessoa tem sua vida dificultada dos menores ao maiores detalhes.  Mas nisso, quem lê e vive habitualmente o conforto proporcionado por sua habilidade leitora, nem sempre pode pensar, envolvido com suas próprias circunstâncias de vida. O fato de não se viver a situação, afasta as pessoas de senti-la com maior realismo.

Mas, na sala de cinema, com a evolução da estória que se desenrola na tela, não só sob a forte emoção provocada pela beleza do argumento como diante do magnífico desempenho do casal de atores (no caso do protagonista, tanto jovem quanto já maduro), entre em nossa alma – e com doída crueza – em que pode se tornar um ser humano quando dele é subtraída a possibilidade de ler e escrever.

Nunca esperaríamos de nós mesmas que pudéssemos compreender o horror de um ser humano promover mortes em série, apenas por ignorância. Não se trata, longe de nós!, de justificar tal violência inominável. Insistimos: não se trata disso! Mas, sim, de dizer para quem puder nos ler, que pudemos sentir como a vida de uma pessoa pode ser destroçada por uma ausência tão significativa como a que lhe pode chegar pela palavra escrita. Isso não é tudo na integridade de seu ser, mas como é essencial!!!!

Quem viu o filme, me corrija ou me ensine melhor a vê-lo, por favor.


“Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer das

 causas do desespero humano, não teremos o direito

 de tentar a supressão dos meios pelos quais o

 homem tenta se livrar do desespero.”


(Antonin Artaud, citado por Arthur Dapieve, em 18/11/05, no Segundo Caderno, O GLOBO)

Professor, o que temos a nos dizer hoje?

Escrito originalmente em 14 de outubro de 1998, em homenagem ao Dia do Professor(*)

Foi só o 15 de outubro vir se aproximando e veio vindo junto uma grande vontade de tentar rascunhar este artigo. Nem bem um artigo, talvez uma conversa, tendo, do lado de cá, uma  professora que, mesmo já afastada das salas de aula convencionais, continua vivendo o permanente ensinar-aprender que acontece no seu dia-a-dia, em suas andanças pelas escolas, debatendo com os professores as possibilidades e limites do jornal na escola. E do outro, todos aqueles que vem encontrando em cada canto, os mais inusitados e distantes, em reuniões e mais reuniões que sempre lhe ensinam o mais importante: que eles - os homenageados de hoje -  sempre estão lá, um ou mais deles - nunca nenhum -, irrecuperáveis em sua mania de tentar, de seguir em frente, de insistir em reinventar formas e meios de fazer de seus alunos cidadãos... Cidadãos que precisam conhecer o mundo e suas contradições e com quem lá vão eles a buscar a melhor forma de discutir os homens, as mulheres, as coisas, a vida, deste e de outros tempos, para que cada qual possa formar opinião, decidir, pensar e agir...

O engraçado - ou espantoso ... -   é que, contrariando a prática habitual, quando o desejo de escrever sobre algo vem sempre acompanhado das idéias que irão compor o futuro texto, desta vez a vontade de escrever não chegava acompanhada do "o que dizer"... Apenas ela, ali, meio escondida, a vontade solitária, vazia de temáticas, ociosa de coisas a dizer...

Amanhece o 14 de outubro, véspera do grande dia, e a sensação do "ou agora ou só ano que vem..." apressa tudo: é ir pra frente do computador e tentar. Mas, como, se o vazio continua?  Falar o já dito não satisfaz. Apenas ficar na já velha e gasta homenagem de dizer que somos isto e aquilo e coisa e tal, encher nossas almas de palavras bonitas, mas ocas de sentido para quem está lá, do outro lado, no emaranhado das escolas, sobrevivendo à custa de muito suor, cada vez espalhado em mais e diversificados lugares, tentando compor um salário menos aviltante? Não, repetir o velho não é o caso mesmo... Falar do presente... e o futuro? Dizer no abstrato ... e o concreto?

O que vai ficando cada vez mais claro é que só tenho mesmo a insistir no elogio aos que persistem; no abraço solidário aos que se emocionam; no incentivo aos que se comprometem com o desafio de ser educador; no agradecimento pelo aprendizado de que vale a pena acreditar que nossos meninos e meninas podem usufruir de um mundo melhor, mais de todos e de cada um    ...

Neste país ao qual o futuro já chegou, sem trazer a bonança tão anunciada, quem sabe nossa força não esteja mesmo na construção do presente, ao qual temos emprestado o melhor de nós para adiar cada vez mais a falta de perspectiva em relação ao que virá?

A nos dizer, mesmo, de verdade, hoje, creio que é isto: vamos prosseguir, buscando cada vez mais aqueles companheiros que, como nós, também queiram vencer o desafio de forjar novas utopias, insistente e solidariamente. Sozinhos não conseguiremos compreender e enfrentar os desafios desta agoridade tão esgotada em seus próprios dias, tão sem respostas para as nossas angústias, angústias que, não raras vezes, nos calam diante de nossos alunos, repletos de quereres e necessidades não satisfeitos, atônitos diante de um futuro que a eles se apresenta como sombrio e fechado?

Resta-nos viver a coragem de prosseguir... Viemos até aqui, já aprendemos um bocado. Caminhemos, então, mais um pouco... O futuro precisa de nós. Quer melhor forma de nos solidarizarmos em nosso dia, olhando-nos uns nos olhos dos outros, dizendo-nos que sem nossa participação fica bem mais difícil encontrar as trilhas do prosseguir?


(*) Publicado no jornal O GLOBO, no dia do Professor

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Rol de roupas, rol de gentes que viam sem ver...

Escrito em 4/4/2011
Triste eu não me lembrar do nome daquela mulher e, pra falar dizendo tudo, nem do nome nem da fisionomia, mas apenas da prática que cercava sua profissão de lavadeira e passadeira de roupa alheia. É que cada semana era a mesma coisa: na casa cheia de filhos, as roupas sujas eram juntadas e embrulhadas numa grande trouxa, sempre com um lençol em volta que, após dar conta de sua função extra de conter todas as demais peças, era fechado em cima, com suas extremidades em cruz (fossem retas seriam consideradas concorrentes), com o ponto central reunindo as quatro bandas que viriam a ser enlaçadas por dois nós encarregados de lacrar o pacote.

Mas a reunião das roupas a lavar não era fruto de nenhuma ação solitária: a cada peça jogada por uma das mãos ao centro do lençol protetor a ser cerrado em seguida, ia-se anotando, com a outra, o tipo e a característica de cada uma delas, de tal modo a se poder conferir, uma a uma, na semana seguinte, quando retornassem, cuidadas e limpas, tratadas pelas mãos daquela tão humilde mulher, de quem me envergonho de nem sequer ter gravado o nome. Hábito, por certo, construído num ambiente onde se olhava sem ver...

Dos recursos usados para dar qualidade ao seu trabalho, bem me lembro do anil, usado para clarear as roupas brancas, e da goma, para aquelas que, segundo alguns padrões da época, precisariam desse toque a mais para garantir a elegância, em geral aplicada em colarinhos e punhos. Ou, bem branda, em camisas e blusas de cambraia de linho.

É bem verdade que algum olor a fumaça vinha junto com as peças, naturalmente pelo efeito do ferro de engomar de que se utilizava a trabalhadora em seu cotidiano, ele que era sempre aquecido à base dos carvões em brasa que se lhe metiam por dentro. Era pesado e até um pouco barulhento, não só pelos pequenos golpes recebidos de encontro à mesa, como também pelo atrito de sua parte superior com a base, a cada estirada feita pela mulher, em seu trabalho de alisar a roupa que lhe cabia lavar, passar e engomar.

A me deixar ainda mais acabrunhada, tenho a recordar uma outra pessoinha que fazia parte da cena. É que sempre havia um filho pequeno, menino ou menina, a atuar como companheiro daquela mulher sem rosto e sem nome, em suas idas e vindas pela cidade, levando o fruto de seu trabalho às várias casas às quais prestava serviço. Sozinha, ela não daria conta do peso a ser transportado. Fazia-se acompanhar, então, da criança, também sem rosto e sem nome. E pior, sem expressão, silenciosa, a cumprir aquele papel espinhoso e totalmente fora do que deveria ser minimamente aceitável. Olhássemos de verdade com olhos de ver e não permitiríamos que se debruçassem sobre frágeis braços infantis aqueles quilos e mais quilos de roupa a serem conduzidas, certamente de um lugar longínquo, para nossas salas enceradas, cheias de crianças totalmente desprovidas dessa experiência tão devastadora. Confesso: o peso a nos vergar, não os braços, mas a alma inteira, era bem outro...

A mágica que venho tentando fazer para não sucumbir diante da consciência encontrada pela vida afora, quando forço o olhar para ver sem véus o que estava e está em volta (como também aqui dentro, no peito, que arde, talvez como a brasa daquele antigo ferro de engomar), é pensar em como aquela criança, desde tão cedo solidarizando-se com a mãe em seu ofício, desde lá, já vinha se humanizando e virando gente que se sabe em cumplicidade com o outro. O básico de se saber em construção conjunta lhe era familiar. Pelo menos isso: quem sabe, não podia estar sendo inaugurada ali, por ela, a bela e essencial arte de caminhar junto – em prol de si, do outro, de cada um e de todos?

Do lado de cá, falo de mim apenas: até hoje, cá estou eu, aprendendo e reaprendendo, dia após dia, entregue à árdua e perene tarefa de refazer as desaprendizagens. É a incessante construção do olhar, sentir, perceber, colaborar, estar junto, refletir, avaliar, compartir, só para falar do trivial simples. O custo é alto para quem perdeu a chance de suavizar o peso sobre os ombros de outrem, ainda na infância. Na falta dessa lição, sobra a necessidade de tentar cruzar a estrada lado a lado, caminho tortuoso para quem vem descobrindo que os meandros e esconderijos do ver são profundos e irreversíveis. De muito prazeroso, contudo, há o sabor de me saber viva, andarilha – por mim, pelo outro, com o outro, vida afora. Ao contrário de Saramago, que não queria fazer nada na vida que envergonhasse a criança que foi, eu desejo, hoje em dia, na reta de chegada, ser cada vez menos cega e indiferente. Minha antiga dívida era com o menino dos braços fortes: não lhe conheço a face, é verdade, mas quero muito que, num encontro simbólico e imaginário, ele goste de olhar nos meus olhos, hoje em dia... Assim, poderemos finalmente nos ver...  Já se faz hora para tão pouco, para quem – ele e eu – tem a seu serviço dois pares de olhos para ver, dois corações para sentir e a eterna benfeitora razão, para nos fazer entender a como nos postar, ombro a ombro, diante da vida. E do outro.