Escrito em 4/4/2011
Triste eu não me lembrar do nome daquela mulher e, pra falar dizendo tudo, nem do nome nem da fisionomia, mas apenas da prática que cercava sua profissão de lavadeira e passadeira de roupa alheia. É que cada semana era a mesma coisa: na casa cheia de filhos, as roupas sujas eram juntadas e embrulhadas numa grande trouxa, sempre com um lençol em volta que, após dar conta de sua função extra de conter todas as demais peças, era fechado em cima, com suas extremidades em cruz (fossem retas seriam consideradas concorrentes), com o ponto central reunindo as quatro bandas que viriam a ser enlaçadas por dois nós encarregados de lacrar o pacote.
Mas a reunião das roupas a lavar não era fruto de nenhuma ação solitária: a cada peça jogada por uma das mãos ao centro do lençol protetor a ser cerrado em seguida, ia-se anotando, com a outra, o tipo e a característica de cada uma delas, de tal modo a se poder conferir, uma a uma, na semana seguinte, quando retornassem, cuidadas e limpas, tratadas pelas mãos daquela tão humilde mulher, de quem me envergonho de nem sequer ter gravado o nome. Hábito, por certo, construído num ambiente onde se olhava sem ver...
Dos recursos usados para dar qualidade ao seu trabalho, bem me lembro do anil, usado para clarear as roupas brancas, e da goma, para aquelas que, segundo alguns padrões da época, precisariam desse toque a mais para garantir a elegância, em geral aplicada em colarinhos e punhos. Ou, bem branda, em camisas e blusas de cambraia de linho.
É bem verdade que algum olor a fumaça vinha junto com as peças, naturalmente pelo efeito do ferro de engomar de que se utilizava a trabalhadora em seu cotidiano, ele que era sempre aquecido à base dos carvões em brasa que se lhe metiam por dentro. Era pesado e até um pouco barulhento, não só pelos pequenos golpes recebidos de encontro à mesa, como também pelo atrito de sua parte superior com a base, a cada estirada feita pela mulher, em seu trabalho de alisar a roupa que lhe cabia lavar, passar e engomar.
A me deixar ainda mais acabrunhada, tenho a recordar uma outra pessoinha que fazia parte da cena. É que sempre havia um filho pequeno, menino ou menina, a atuar como companheiro daquela mulher sem rosto e sem nome, em suas idas e vindas pela cidade, levando o fruto de seu trabalho às várias casas às quais prestava serviço. Sozinha, ela não daria conta do peso a ser transportado. Fazia-se acompanhar, então, da criança, também sem rosto e sem nome. E pior, sem expressão, silenciosa, a cumprir aquele papel espinhoso e totalmente fora do que deveria ser minimamente aceitável. Olhássemos de verdade com olhos de ver e não permitiríamos que se debruçassem sobre frágeis braços infantis aqueles quilos e mais quilos de roupa a serem conduzidas, certamente de um lugar longínquo, para nossas salas enceradas, cheias de crianças totalmente desprovidas dessa experiência tão devastadora. Confesso: o peso a nos vergar, não os braços, mas a alma inteira, era bem outro...
A mágica que venho tentando fazer para não sucumbir diante da consciência encontrada pela vida afora, quando forço o olhar para ver sem véus o que estava e está em volta (como também aqui dentro, no peito, que arde, talvez como a brasa daquele antigo ferro de engomar), é pensar em como aquela criança, desde tão cedo solidarizando-se com a mãe em seu ofício, desde lá, já vinha se humanizando e virando gente que se sabe em cumplicidade com o outro. O básico de se saber em construção conjunta lhe era familiar. Pelo menos isso: quem sabe, não podia estar sendo inaugurada ali, por ela, a bela e essencial arte de caminhar junto – em prol de si, do outro, de cada um e de todos?
Do lado de cá, falo de mim apenas: até hoje, cá estou eu, aprendendo e reaprendendo, dia após dia, entregue à árdua e perene tarefa de refazer as desaprendizagens. É a incessante construção do olhar, sentir, perceber, colaborar, estar junto, refletir, avaliar, compartir, só para falar do trivial simples. O custo é alto para quem perdeu a chance de suavizar o peso sobre os ombros de outrem, ainda na infância. Na falta dessa lição, sobra a necessidade de tentar cruzar a estrada lado a lado, caminho tortuoso para quem vem descobrindo que os meandros e esconderijos do ver são profundos e irreversíveis. De muito prazeroso, contudo, há o sabor de me saber viva, andarilha – por mim, pelo outro, com o outro, vida afora. Ao contrário de Saramago, que não queria fazer nada na vida que envergonhasse a criança que foi, eu desejo, hoje em dia, na reta de chegada, ser cada vez menos cega e indiferente. Minha antiga dívida era com o menino dos braços fortes: não lhe conheço a face, é verdade, mas quero muito que, num encontro simbólico e imaginário, ele goste de olhar nos meus olhos, hoje em dia... Assim , poderemos finalmente nos ver... Já se faz hora para tão pouco, para quem – ele e eu – tem a seu serviço dois pares de olhos para ver, dois corações para sentir e a eterna benfeitora razão, para nos fazer entender a como nos postar, ombro a ombro, diante da vida. E do outro.
Comentário recebido de Márcio Rangel:
ResponderExcluirCarmen,
Gostei muito do seu texto sobre a perda do essencial que, como bem o disse Antoine de Saint-Exupéry, “... é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração”. Realmente, o que é mostrado não é visto, assim como, o que é dito não é ouvido. Esse defeito de comunicação responde, em parte, pela impossibilidade de entendimento perfeito entre pessoas, ainda que conheçam com intimidade seu idioma e tenham excelente visão ocular. Por isto, conversar é difícil e as pessoas se entenderem quase impossível.
Mesmo entre aqueles que se comunicam através de culto linguajar, o que é dito quase nunca é plenamente entendido e, mesmo para aqueles que se acostumaram a identificar a beleza deslumbrante e a modéstia encantadora das violetas, o que é mostrado raramente é visto.
Se os casais estivessem mais atentos e cuidadosos em relação este fato, talvez os casamentos durassem um pouco mais.
É assustadora a superficialidade do grau de percepção que a grande maioria das pessoas consegue alcançar sobre a vida e sua essência durante o pequeno tempo de permanência aqui no “planetinha”. E que se agrava, segundo penso, mercê de um psiquismo formado através do uso da linguagem sincopada com que se pretende encurtar o tempo de fala nas mensagens eletrônicas, porque, o de que se trata, examinando bem o rescaldo de nossos dias, é de fazer a vida correr.
Correr por onde, para onde? Correr por quê? para quê?
A contemplação, a reflexão, a meditação, imprescindíveis à busca do essencial, e que se alimentam do bem ouvir os sons e ver as cenas da vida, são práticas que não se coadunam com a pressa do mundo atual.
Estamos fadados a perder o melhor da vida, de suas experiências, de suas ofertas. Que pena!
Ainda bem que você resgatou estas lembranças tão preciosas de sua infância, e não importa tanto o nome e a fisionomia da lavadeira e de seu filho, você foi buscar, no baú do tempo, o essencial.
Por insignificante possa parecer, esta descoberta permite-lhe um recaminhar (você parece gostar deste tipo de construção no mundo dos neologismos), um retorno a velhas sendas que a levarão, certamente, a antigos sítios nas lembranças do ontem, transmudados, pelo novo olhar, em lindas paragens onde o bucolismo ingênuo pode ser pintado com tintas perfumadas dos odores florais próprios somente dos maravilhosos jardins do Éden...
A imagem não é lá estas coisas, mas, quem sabe? Talvez desta forma capenga eu consiga passar a você a alegria de ter tomado conhecimento do seu resgate gostoso do passado, que serviu de inspiração para o texto, tão repleto de sensibilidade e de percepção profunda do essencial.
Meus parabéns!
P.S.: A lavadeira lá de casa chamava-se Olívia e seu filho, que perdeu a visão de um olho, atingido por uma baga atirada com uma seta por um amiguinho de infância, durante uma guerra entre nações de bairros diferentes, era chamado Benone. Não tenho certeza de que era este o seu incrível nome no Registro Civil, mas, para nós, da turma da Rua do Barão, sempre foi o Benone, cujo nome completo, no mundo cruel das crianças, era Benone Caolho. Como se Benone, com um nome deste, precisasse de sobrenome para ser identificado. Estou falando de coisas de sessenta e cinco anos atrás, quando as crianças já eram bichinhos tão perigosos como as de hoje. Parece que está na essência, embora a centelha de vida seja de Deus.
Marcio
Comentário recebido de Renato Sobrosa:
ResponderExcluir"Lindíssiomo texto. Emocionei-me. Beijos, Renato"
Recebi de Eleonora Cretton: "Excelente! Um dos mais sérios e profundos que vc já escreveu (dos que tenho lido até então). Cala fundo na gente. Lá em casa, também vivemos situação parecida e, talvez, nunca tenhamos nos tocado. Vc acordou algo na gente..."
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