quarta-feira, 30 de março de 2011

Deixem-me em paz com meu sonho!


Em 30/03/2011

Chovendo no molhado: quase tudo para mim passa pela escrita.  A conversa entre cada ponto de meu corpo – o pedaço que pensa, a fração que deseja, a lasca que indica necessidades – e a mão que dedilha, deixando escorrer sensações, é intenso, inteiro, inacabável. Sonhos, sentimentos, projetos, frustrações, tudo clama por registro, e parece mais apropriado por mim quando passa pela mão salvadora que tece fios e mais fios com as palavras que brotam sei lá de onde...

O encontro com o teclado, hoje, vem por conta da conversa que tive ontem com uma grande amiga, em relação a quem o que me une é muito mais a troca de nossos gostares recíprocos do que propriamente afinidades quanto aos modos como olhamos a vida e dela recolhemos o que vai chegando para cada uma.uma grande amiga, amiga dessas em relação a quem o que me une é muito mais a troca de nossos gostares recíprocos do que propriamente afinidades quanto aos modos como olhamos a vida e dela recolhemos o que vai chegando para cada uma. A gente se gosta, mas não necessariamente a gente gosta do que a outra gosta na vida. Somos diferentes, e isso, pelo menos para mim, é uma lição diária do que é ter afeto por alguém. E digo mais, o mais difícil deles, pois que dedicado a alguém bastante distante do meu cotidiano, quanto ao sentido que escolhemos, cada uma, para nossas próprias existências. Mas, eu dizia, ontem, estando com essa minha grande amiga, falamos de tudo. Tínhamos tempo, passamos todo o dia juntas, muitos engarrafamentos a ultrapassar, portanto, muitas trocas possíveis de serem feitas. Pois, conversa vai, conversa vem, sozinhas, retornando à casa, pela Ponte com seu habitual trânsito lento, eis que mais uma vez eu confesso para ela o meu sonho romântico de ainda viver um grande amor. Eu, sim, aos 65 anos, ainda sonho com um grande amor. E pior: anuncio o sonho, mesmo que absurdo, extemporâneo, até ridículo, no dizer de alguns.

A minha amiga, sempre prática e racional, e, com certeza, coberta de razão, retruca, combatendo veementemente a minha doce ilusão, contando com exemplos de casais e mais casais – conheço todos, ela tem mesmo razão! – que “não são felizes mas têm cônjuges”, falando, inclusive, do exemplo mais recente de uma conhecida, cujo namorado, a julgar pelo que ela ali me narrou, realmente é um parco companheiro, daqueles cuja forma de ser nos levam a pensar ser melhor estarmos sós do que mal acompanhadas. Desatento, egoísta, pouco cortês, realmente um péssimo exemplo do que poderia ser um grande amor para quem já está bem mais além (e ponha-se além nisso...) da metade do caminho por estas bandas terrenas. Segundo ela, portanto, besteira minha, esperar pelo inexistente. Isso seria coisa para quem vem junto, desde cedo, construindo uma história de parceria e cumplicidade. Perfeito! Nisso, ela pensa como eu. Mas, e daí, o que fazer? Não há dado de realidade que me afaste de meu sonho, por mais irreal que pareça ser. E é.

Duas mulheres, dois olhares, duas perspectivas. Com ela, toda a razão, que lhe amacia o caminho que sempre veio e sempre virá. Comigo, apenas a tristeza de me saber uma mulher[1] que sonha.


Hoje, claro!, não consegui terminar o dia sem vir pra máquina registrar o desacerto daquela conversa. O que faltou foi eu me explicar melhor pra minha amiga – e, hoje, pro mundo todo, essa ilusão que a gente tem quando escreve, de que o Outro, qualquer que seja ele, o mundo mesmo, enfim, nos ouvirá e compreenderá nossas palavras e intenções –, repito, faltou explicar pra quem quiser ouvir que o que eu quero é o sonho. Sem tirar nem por: o que eu quero é o sonho!

Deixem-me morrer com ele. Ele está entranhado em todo o meu ser. Ele me faz chorar ao ouvir música, ao ver TV, ao assistir a um filme, trazendo-me fantasias alentadoras... Não há argumentos racionais que dele me afastem. Razão eu utilizo para outras dimensões de minha vida – Ah, e como, e quanto! –, mas, em se tratando da espera do grande amor, deixem-me sozinha à sua espera. Só a emoção da espera dá a dimensão de sua magnitude. Parodiando Liz Luft[2], aqui encerro dizendo em alto e bom som: DO MEU SONHO SEI EU. E sou inteiramente só quando se trata dele...


[1] Homenagem a Vinícius...
[2] Esta autora, em seu livro Lado Fatal, num dos seus poemas, ao tratar da perda de seu grande amor, afirmou, com toda a propriedade: “Da minha dor sei eu”.

terça-feira, 29 de março de 2011

Subir a Serra brincando - a hora é esta!

Publicado originalmente no blog da Campanha SUBA A SERRA BRINCANDO em 6/3/2011
Semana passada ouvi de um amigo que o Egito agora está mais perto de nós do que a nossa Serra que caiu por terra. Tendo a concordar. Desde que tenhamos clareza de que também o Egito passará. Tudo é fugaz. Nós mesmos não resistimos a tanta crueza com que nos deparamos na TV e, talvez por autodefesa, escapar de uma tragédia para olhar outras novas/velhas notícias seja uma proteção que estamos encontrando para não sucumbirmos à propalada impotência que cada um tem diante do caos. Claro que restaria a opção de levantarmos de frente da TV, mas aí são outros quinhentos...

Na verdade, para sermos justos, precisamos reconhecer que muitos já saíram de sua zona de conforto e colaboraram, confirmando a nossa extrema capacidade de ajudar quando uma nova tragédia atinge nossos pares, mais ou menos distantes.

Devemos considerar nesta hora, no entanto, que o temor que se abate sobre quem está perto da população atingida já não é mais a simples falta de bens materiais, vindos dos lugares mais inusitados e distantes, mas é o tempo que durará esta situação “provisória”. Sabemos todos e não vamos nos iludir: trata-se de um provisório cuja extensão de tempo ganhará ares de permanência, tamanha a dificuldade para que cada qual volte a ter uma vida mais dignamente organizada.

Nesse sentido, o grave problema com que se defrontam os prestadores de socorro é a urgência de se providenciar, ampliar e atribuir um caráter de maior permanência ao atendimento afetivo, social e educativo que vem sendo oferecido às vítimas, e aqui estamos nos referindo prioritariamente às crianças e jovens.

Precisamos de voluntários que brinquem, que contem histórias, que façam com que cada criança ou jovem abrigado deixe de ser apenas o ocupante do colchão número tal. As perdas já acontecidas e sentidas na carne por cada um não podem ser agravadas por este limbo em termos da educação e cuidado que são devidos a cada qual. Está em jogo o comprometimento emocional, mental, físico, integral mesmo, de um contingente significativo de filhos de nosso tempo.

Que venha quem puder! Que, pela ação, cada qual possa ampliar os limites de sua atuação como cidadão. Que se apresente quem estiver disposto a subir a serra brincando. O cobertor da hora é este.




[1] Colaboradora da Campanha Suba a Serra Brincando - Recreação Voluntária na Região Serrana do RJ. Contato: recreacaovoluntaria@gmail.com

Sobre enchentes e lixões, sobre os pobres e nós

Morro do Bumba, Niterói, RJ Publicado originalmente no site da Caros Amigos - em 12/05/2010

A semana, como de praxe, foi recheada de leituras. Muita TV também, porque sou noveleira das boas, e adoro uma entrevista... Política também é vício antigo e programa sobre música é sempre caçado - e não raras vezes - encontrado na calada das noites insones. Daí não saber ao certo - não duvido que a idade também contribua para isto - onde li ou vi uma frase que, de imediato, foi se reunir a outras tantas que guardo como lição. Quem souber o autor me avise, é um favor. A lição é a de que "nem todos têm talento para enxergar a realidade". Pois ficou martelando e eu não sabia que tão rapidamente a aplicaria à vida que chegava, desta feita recheada de dor e desamparo: as chuvas que inundaram a cidade, esta que, não sendo minha por nascença, adotei por especial encontro afetivo.
Devo confessar, em acréscimo, que uma outra reflexão veio se somar à ideia do tal raro talento de que trata o autor de que não me lembro o nome. Vem de uma sessão de análise onde eu pude perceber que existem situações que se repetem em nossa vida, situações que nem sempre as percebemos, até que um dia, sem mais nem menos (ou até com muito mais vida e muito menos defesa...), a enxergamos com clareza. Das vezes anteriores não se está preparado para ver, ou acumula-se vida para abastecer o olhar de capacidade de ver. É como se a pessoa vá se fortalecendo para viver o dia em que possa - junto aqui as ideias - ver surgir o talento glorioso que possa trazer lucidez para ver.
Também das sessões de análise surge um outro ensinamento oportuno: o de que a primeira medida para se solucionar um problema é saber-se com um problema a resolver. Não é à toa que o alcoólatra começa a enfrentar sua própria dificuldade diante da bebida quando se percebe como tal. Antes, nada feito. E olhe que nem mesmo assim - seja com relação a que vício for - a coisa é simples...
E o que tudo isso tem a ver com o sofrimento que se abateu sobre uma parcela sofrida dos pobres de minha cidade?
Pausa para pensar. É preciso tempo, é necessário bom senso. É mesmo questão para pensar com tempo.
Morro do Bumba, Niterói, RJO que me assustou diante do que sucedeu - a morte, o desassossego, o desamparo, a aflição, a penúria, a insegurança, a perda da própria história, e tantas quantas outras expressões que puderem vir em meu socorro para significar o que sinto diante da tragédia que atingiu tantos pobres -, o que me assustou foi o que ouvi de inúmeras pessoas que, como eu, são feitas de carne e osso, estudaram, têm a sua casa segura, não sofreram perdas e etc. e tal. De muitas delas ouvi palavras que transformaram as vítimas em autores e responsáveis pela tragédia que se abateu sobre suas vidas. Exponho aqui uma dolorosa síntese:
- "Quem mandou querer viver no miolo da cidade?"
- "Vai me dizer que não sabiam do perigo..."
- "Quando o governo quer tirar, quem quer sair? Ninguém."
- "Pobre é bicho teimoso mesmo... por que não escolheu outro lugar para morar?"
O que me ocorre pensar é que esta nossa chamada "classe média" não pode ver (por enquanto, eu espero) o que de fato acontece. Se cada olhar levasse para os corações e mentes de quem assim fala e pensa a perversidade da desigualdade social como produtora de todos estes males, um "AA social" seria imediatamente providenciado para que a única solução para o caso - a busca da justiça social - fosse ferrenha e coletivamente buscada para que o fosso econômico entre pobres e ricos deixasse de existir. Ou seja: o que sinto - e com quanta dor! - é que a cegueira que se coloca para os não pobres que assim pensam - é providencial. É a saída que encontram, num nível inconsciente, imagino, para viverem o dia seguinte, para saírem de casa e encontrarem os miseráveis que se espalham pelas ruas, podendo prosseguir, continuando a caminhar, sem caírem por terra,  dominados pela dor da consciência enfim encontrada, até tomarem fôlego para irem em busca de saídas, tomando para si a tarefa de construírem uma sociedade humanizada.
É o que sinto. É o que me vi no dever de falar. E publicamente. Se ouvi palavras tão medonhas, perdoem-me se exponho a mim e as minhas. Nelas acredito. Para mim, a busca de talento para construir uma nova realidade também passa pelas palavras.

A leitura de jornais nas escolas


Originalmente publicado no jornal O GLOBO, em 1/2/2007 e no site do Observatório de Imprensa em em 6/2/2007


Hoje, no Brasil, dezenas de empresas jornalísticas desenvolvem programas que levam seus próprios veículos a escolas, o que se constitui em iniciativa de grande relevância para a formação de novos leitores, podendo significar a viva expressão do compromisso social que têm com as comunidades nas quais estão inseridas.
A questão que aqui quero discutir é se também para as escolas tais iniciativas trazem benefícios. Até que ponto a leitura e o uso de jornais facilitam – ou podem facilitar – um processo de construção de conhecimento em que cada um, alunos e professores, seja sujeito que vive um processo que contribua para que cada qual reconstrua o conhecimento sobre os fatos, tomando posições, analisando os diversos ângulos de cada questão, podendo escolher caminhos sabendo o porquê de suas escolhas? Para que a presença de jornais na escola possa trazer benefícios, alguns requisitos são necessários, indispensáveis mesmo. Lembro apenas alguns:

·         a presença do jornal na escola deve estar vinculada à defesa da democratização do acesso ao mundo da leitura, em seu sentido mais amplo, indispensável para a construção da cidadania. Livros de literatura devem chegar aos alunos pela porta aberta, pela leitura dos jornais;
·         o jornal em sala de aula deve ser utilizado garantindo sua análise como objeto de estudo, devendo ser aproveitado em seu todo, pois trabalhar apenas recortes soltos dificulta a compreensão da dinâmica e das características da imprensa pelos alunos;
·         a presença do jornal na escola não pode prescindir de um processo de formação continuada dos profissionais do magistério, em que se dê voz a cada um deles, divulgando, inclusive, suas experiências bem-sucedidas.

Somente profissionais sujeitos podem formar alunos sujeitos

Nesse processo de formação (o que seria dos professores sem seu trabalho conjunto, coletivo?), podem ser enumerados alguns pontos a serem estudados pelos professores nas diversas atividades de formação continuada que venha congregá-los:

a) o cuidado para não se escolarizar o jornal de forma a prejudicar o interesse do aluno por sua leitura. Não se pode correr o risco, por exemplo, de se fazer com o jornal o que muitas vezes se faz com as obras literárias, aplicando-se provas para se conferir o que é uma manchete, uma seção ou uma editoria;
b) o debate sobre a relação entre o trabalho com o jornal e os conteúdos escolares, enfatizando a relação entre a teoria e a prática. Esta deve ser a constante referência para o processo pedagógico, de modo a colaborar para que sejam superadas práticas arcaicas e centradas no conteúdo como fim em si mesmo;
c) as amplas possibilidades de o jornal contribuir para o tratamento interdisciplinar do currículo, já que a notícia já possui um caráter amplo e não aprisionado a apenas uma área do conhecimento;
d) o jornal e sua contribuição para o cumprimento da função da escola hoje (o aluno que lê melhor o jornal não pode ler melhor a realidade?);
e) e, por fim, a discussão sobre a própria imprensa e a sua influência no modo de pensar e agir de cada um.

Para que um programa de utilização de jornal na escola forme leitores deve-se colocar em oposição aos dois mitos que hoje existem em torno do uso do veículo na escola, quais sejam:
·         Mito 1: "A busca da informação na imprensa, em si, é condição para se exercer a cidadania";
·         Mito 2: "É melhor não buscar a informação na grande imprensa já que ela é pelo pensamento das elites".

Superá-los deve significar a promoção de um trabalho que contribua para que todos leiam sim, mas, criticamente, fazendo-se interpretadores da interpretação que cada jornal faz da realidade.
A escola, na verdade, forma valores e atitudes do sujeito em relação ao outro, à política, à economia, ao sexo, à droga, à saúde, ao meio ambiente, à tecnologia etc. Para tanto, os conteúdos curriculares precisam ser desenvolvidos em prol do desenvolvimento de capacidades que permitam que cada aluno compreenda e intervenha nos fenômenos sociais e culturais de seu tempo. O jornal, desde que lido criticamente, pode ajudar – e muito! – nessa direção.

Uma coisa é certa: passe por onde passar a utilização de veículos noticiosos nas escolas, o principal é que os professores estejam vivamente envolvidos na definição, realização e acompanhamento da proposta pedagógica que a envolve.

São eles, sem dúvida, os grandes formadores de leitores com que se conta cada vez mais. Até porque é a possibilidade de ler o que está impresso que pode preparar os nossos jovens para as leituras que vierem a fazer de veículos noticiosos em suas versões on line.

Escute a presidente, secretário!



A ideia que subjaz ao conceito de choque de ordem que está sendo proposta para corrigir as mazelas da Educação no Rio de Janeiro, ao que me parece, traz em si uma visão que contraria as melhores possibilidades de ser oferecida a educação pública, democrática, de qualidade socialmente referenciada, laica e universal que é devida à população de nosso Estado.
Só o fato de serem agrupadas, sob este rótulo, as medidas a serem levadas a efeito para o setor educacional, já sugere que são concebidas com um caráter impactante, imediato, rápido, conflituoso, metódico, disciplinar, preceitual,…, que tragam “pronto restabelecimento” para o doente em estado tão grave, no caso, a educação escolar oferecida pela rede oficial estadual.
Depois do que vimos pela TV quando da tomada do Alemão, numa alegoria tresloucada, posso imaginar que talvez fosse assim o novo Choque: coloque-se o “salvador” Bope Educativo (inspetores, julgadores, avaliadores, controladores…) para invadir as escolas, à mostra, posturas de quem tem certezas já sabidas e culpados já encontrados a priori; e de lá sairão correndo, fugidos, os responsáveis pelo fracasso da ação educativa, os maus profissionais da educação. Porta afora, sairão ofegantes, atravessando a estrada mais próxima, a caminho de casa, entristecidos uns, revoltados outros, incrédulos outros tantos…
Nem o caminho do sindicato será buscado, pois, diferentemente de outros tempos, parece que não tem havido uma relação mais estreita entre os profissionais e suas entidades. E os responsáveis pelo choque da ordem poderão fincar, bem no hall de entrada, a bandeira de sua produção documental (novas portarias, propostas curriculares, exigências, editais,…), anunciarão a boa nova, que é chegado um novo tempo, de paz, de produtividade, de estímulo às melhores competências exigidas dos alunos pelo mercado, tempos de separar o joio do trigo, tempo de prêmios, de uma nova ordem, enfim.
Do meu ponto de vista, a Educação não necessita nem de choque nem de ordem, que dirá de choque de ordem! A Educação não pode ser vista como um bom negócio que se faz rapidamente, diante da sagacidade de quem tem habilidade para fazer crescer lucros e oportunidades. A Educação não precisa (muito pelo contrário!) de que seja estimulada a competição entre os profissionais da educação, como tem sido comum nos últimos tempos.
Mesmo estando em tempos de mais cuidar de meu jardim que de dar aulas, não posso deixar de pedir um favor à equipe da secretaria de educação do Estado: escutem a presidente. Assim, quem sabe, as coisas comecem a caminhar numa outra e boa direção. Sim, refiro-me ao discurso de Dilma (em quem nem votei no primeiro turno; estive com Marcelo Freixo e com quem estava com ele) no momento de sua posse no Congresso Nacional, quando afirmou que:
“só existirá ensino de qualidade se o professor e a professora forem tratados como as verdadeiras autoridades da educação, com formação continuada, remuneração adequada e sólido compromisso com a educação das crianças e jovens.”
Imagino que essa, mais do que simplesmente uma ação, é uma premissa para o sucesso de qualquer política que transforme, verdadeiramente, a Educação: uma nova compreensão acerca do quanto o professor é a legítima autoridade capaz de fazer mudanças que perdurem e que, de fato, transformem, na essência, aquilo que precisa ser mudado. Políticas vindas de fora para dentro, políticas que neguem o professor, políticas que tentem secundarizá-lo, são inúteis. Dão no que aí está. E mudar para permanecer, não é o caso (Ou é?).
Imagino que reforçando o cotidiano da escola, deixando valer o poder dos profissionais em se influenciarem mutuamente, estabelecendo-se o trabalho coletivo na escola, com um sentido real para todos poderem repensar suas práticas, num processo de formação continuada em serviço, revendo-as em conjunto, é um começo.
O professor, com autoridade, terá poder de exercer influência, juntando o agir e o pensar num só sujeito, sem que uns valham mais que outros. E sem que haja necessidade de fuga. Que, aliás, pelo que pude saber, já tem havido muita, com grande número de desistências de mestres abandonando a carreira.

(*) Artigo publicado originalmente no sítio da Caros Amigos em 26.01.2011

Entrevista com Carmen Lozza

Se o aluno não entende a influência da mídia, está desconhecendo a si próprio

                                                                                         Por Katarine Flor do NPC (*)

O curso de Jornalismo de Políticas Públicas Sociais da UFRJ, coordenado pelo professor Evandro Ouriques, recebeu no dia 27 de abril (**) a professora aposentada da UFF Carmen Lozza, (...). Ela ressaltou a importância de se levar o jornal para as escolas, e incentivar a leitura crítica da mídia. "É um recurso didático, que precisa ser conhecido, lido e interpretado". Para ela, é necessário buscar a reflexão crítica dos alunos sobre a influência da mídia nos indivíduos, para que eles saibam fazer escolhas. E enfatizou o compromisso social da escola nesse processo.

Leia a entrevista feita com Carmen Lozza.

BoletimNPC - A senhora falou sobre a influência da mídia nas escolhas individuais e que é importante trabalhar uma visão crítica com os alunos. Por que isso é tão importante?

Carmen Lozza - Se o aluno começa a perceber que ele não é o dono total de sua vida, e que sofre uma influência enorme da mídia, ele vai se conhecer melhor. Vai entender seus limites e suas possibilidades para intervir. Não adianta formar um aluno que acha que é o "bam bam bam", e que pode tudo. Ele vai ter uma avaliação de conjuntura completamente equivocada, porque ele não pode tudo não. Também não é positivo um aluno que acha que tudo é determinado, e que não pode nada. Este aí então vai ficar alienado.

Por isso é fundamental contribuir para que ele faça essa análise crítica. Quando ele começa a entender a influência que sofre da mídia, ele vai se assenhorando dele próprio, das suas próprias capacidades e das suas condições de intervenção.

A expectativa que eu tenho é que ele possa fazer escolhas melhores. Não só em relação à leitura, mas tudo em sua vida. E que ele possa escolher em quem vai votar, o que pode fazer no grêmio dele, qual a proposta mais adequada. Ele vai ficar mais lúcido em relação aos seus limites e possibilidades. Se ele não entende a influência da mídia, ele desconhece a si próprio.

BoletimNPC - Ao trabalhar essa questão nas escolas, como a senhora percebeu essa mudança?

Percebo alterações quando eles começam a ter atitudes na própria escola, e tentam mudar alguma coisa. Quando o aluno, por exemplo, lê no jornal sobre uma vala que está fétida do lado da escola, e ele vai se informar sobre aquilo. Que vala é aquela? Por que está assim? Aí ele descobre que não é um valão, mas sim um rio que está completamente poluído. E vai tentar buscar uma solução para aquilo. Vai falar com os colegas, com os professores, e tentar se juntar para fazer alguma coisa para mudar.

BoletimNPC - A senhora acredita que os professores já estão muito conformados e desestimulados, e que, por isso, não buscam esta leitura crítica utilizando os
jornais?

Tem tido muito desânimo, sim. Claro que existem aqueles que não desistem, mas o professor está muito empobrecido. Muito entristecido. É isso que eu tenho visto na maioria das vezes.

Ou então, quando a escola é particular, ele está sem espaço, sem opção. Tem que trabalhar em instituições onde não tem poder nenhum. Então ele tem que seguir aquela "cartilha". Oferece um ensino apostilado, onde tem que passar o conteúdo daquele dia. Não tem espaço nenhum para trabalhar jornal, nem nada diferente daquilo que está naquela apostila.

BoletimNPC - Durante o curso, a senhora falou sobre o pensamento crítico, mas que ele vai além de estimular a opinião. Como é isso?

A opinião não tem compromisso com a verdade, com a ciência. Eu posso ter a opinião mais diversa sobre vários assuntos. Agora, se eu me disponho a tentar entender uma determinada questão, não é mais uma opinião que fique na mera vontade de cada um. Eu tenho que buscar indícios mais científicos, fazer relações, localizar melhor aquilo, estudar muito. Eu não posso fazer uma crítica sem ter uma base teórica que possa me dar uma fundamentação para entender melhor aquele assunto. A opinião é uma questão até de gosto. Pensamento crítico é outra coisa.


(*) Originalmente publicada no Boletim do NPC.
(**) de 2009.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Sai um filé com fritas, aí, meu camarada!

 Escrito originalmente em 2011

Uma vez que fui a uma reunião em uma escola na Barra da Tijuca, pertencente a uma destas redes de ensino privadas que têm mil filiais espalhadas pela cidade, pelo estado, até mesmo pelo país, as chamadas escolas apostiladas. Pois, vocês não vão acreditar: atende-me uma coordenadora, uniformizada, com cara de gerente de banco ou aeromoça, toda de azul marinho, na blusa o emblema da escola no peito, bem na direção do coração. A imagem já era tão pasteurizada que me causou arrepios. Mas, tentei não criar preconceitos, afinal de contas, marxista de carteirinha, não queria me deixar levar pela aparência, estas coisas de quem tenta buscar a tal da unidade entre aparência e essência. Era ir adiante e não me deixar levar pelo impulso de fugir dali, às pressas...

Pois não tive êxito. Conversa vai, conversa vem, enquanto caminhávamos em direção ao auditório onde me aguardavam os professores com quem eu conversaria sobre Mídia e Educação, o que vocês imaginam que a moça possa me ter dito, com galhardia, certa de que sua afirmativa guardava grande sabedoria e que era adequada para aquele momento de jogar conversa fora tão comum para a circunstância? Juro que teria sido melhor se tivéssemos ficado naquele feijão-com-arroz de o-dia-está-quente,-ontem-esteve- mais-frio,-a-chuvinha-veio-em-boa-hora, ou coisa que o valha...

A pérola foi a seguinte:

- Sabe, professora, nossa meta este ano é alcançar a qualidade de ensino, custe o que custar. Temos feito reuniões e mais reuniões com os professores de todas as unidades para debater a nossa intenção. O exemplo que tenho dado para eles e que acho pertinente é que a nossa rede tem que se espelhar no Mc Donald’s. Quando vamos a um Mac Donald’s a batata frita não tem a mesma qualidade, esteja a filial onde estiver? Pois é isto que queremos: que o nosso ensino seja como a batata frita do Mac Donald’s, sempre igual, Afinal, todos têm que receber o mesmo conteúdo, não é?

O bom é que Deus existe e me protegeu naquela hora – para que eu não tivesse tempo para responder nada, com o risco de criar um clima desagradável com a minha anfitriã, eu que já via fugir garganta agora, já pulando na gola da blusa, algumas palavras que iriam tentar fazer conjecturas sobre algumas possíveis diferenças entre batatas fritas e gente. Eis que uma porta se abriu e era o auditório à nossa frente, muitos olhares em minha direção, hora de cumprimentar os colegas e começar a falar. A conversa, com a cumplicidade de Deus terminava ali.

Mas, para que eu pudesse dormir tranquila, na noite que viria em seguida – e nas seguintes, por suposto -,  arranjei um jeito de, naquela fração de segundos que me separava da moça-que-vê-gente-como-batata frita do auditório cheio, com quem eu esperava dialogar com o coração quente de vontade de tratar das mazelas e perspectivas da escola, pois eu tive tempo de incluir em meu discurso um trecho que tratava justamente de como a mídia nos massifica, tentando fazer de nós uma maçaroca, todo mundo meio de um tom só, de um gosto só, de uma escolha só, quase como as batas fritas do Mac Donald’s, iguaiszinhas onde quer que estejamos...

Nada disso, aqui resistimos, aqui refletimos, aqui insistimos em termos direito à diferença, ao pensamento crítico. Aqui podemos olhar e tentar ver mais além, com todo o direito de gostarmos de bife mal ou bem passado, “ao ponto”, se for esta a preferência, para acompanhar batatas, quaisquer que sejam elas, fritas, assadas, chips, gratinada, à portuguesa, Rösti, até as da caixinha vermelha do Mc Donald’s, todas deliciosas. No meu ponto de vista, Há outros...

Conhecer-se a si, conhecer a mídia

Escrito originalmente em 2009 (*)

As empresas jornalísticas têm se empenhado de maneira especial para formar novos leitores, seja rejuvenescendo seus próprios veículos, criando seções e suplementos, seja desenvolvendo ações – de cunho mais nitidamente comercial ou não – para atrair o jovem leitor, levando jornais para escolas de suas regiões. São dezenas de empresas, associadas à Associação Nacional de Jornais (ANJ), que hoje mantêm os chamados programas de Jornal e Educação. É bem verdade que ultimamente tem havido um certo refluxo nesse processo, seja pela crise mais recente, seja pela invasão progressiva e avassaladora da leitura por meios digitais, que têm levado muitos desses projetos a se repensarem, realizando revisões de rota e estratégias, de modo a se abrirem para a interatividade e para a ampliação dos suportes que trazem a notícia, para além do jornal de papel.

Não pretendo aqui discutir – e haveria muita coisa a dizer, mas fica para uma próxima vez – a problemática da leitura de jornais por meios digitais quando reduzem ou excluem o jornal tradicionalmente formatado em paginas impressas, estes que permitem releituras e que, quando lidos criticamente, podem aproximar o leitor que se inicia da leitura em seu potencial mais amplo. Sem dúvida, o jornal impresso é facilitador de uma leitura mais aprofundada, necessária para que o leitor, principalmente aquele que ainda está se fazendo capaz de ler “para além da aparência”, se assenhore da informação que a imprensa transforma, a seu jeito, em notícia. Mas, como disse, isso é assunto para um outro momento.

O que pretendo enfatizar aqui, nas poucas linhas deste artigo, é o quanto o jornal, de papel ou não, e com todos os seus defeitos – e até mesmo, ou principalmente, em função deles – precisa estar na escola para ser lido pelos alunos, sob a orientação de professores que lhes auxiliem a destrinchar as informações. É na escola que os alunos podem embrenhar-se pelos caminhos da reflexão, tentando construir um novo conhecimento e avaliando o quanto a sua própria forma de ser sofre influência daquela maneira de contar a História que a imprensa produz e que tanto vai tracejando rotas que poderiam ser diferentes se a narrativa fosse outra e se a força da mídia não fosse tão eficaz perante nosso modo de pensar e agir. Coisa que ela, indubitavelmente, é.

Meu propósito, então, neste momento, é aproveitar e reafirmar as sábias palavras de nosso compositor Billy Blanco em seu CHORO CHORADO, quando diz que “o que dá para rir, dá para chorar”. É que estou convencida de que, se do ponto de vista empresarial é uma necessidade a criação de alternativas para levar jornais – seja em que suporte for - para as escolas, também do ponto de vista de uma educação que visa a humanização é urgente a imprensa ser lida sistematicamente por alunos e professores.

Aluno educado, principalmente nestes nossos dias, é aluno que avalia seus limites e possibilidades frente ao seu contexto, para pensar e agir em prol de um mundo diferente do que aí está. Quando o aluno começa a analisar e perceber a influência que sofre da mídia, ele vai conhecendo a si próprio, percebendo a gênese de seu modo de ser e as suas próprias condições de intervenção. Assim, quem sabe, não pode fazer escolhas melhores pela vida afora, pois que vai tenho maior clareza quanto aos seus limites e possibilidades? Não só em relação à leitura, mas em relação a tudo o mais. Sim, porque, se ele não entende a influência da mídia, ele desconhece a si próprio. Ou pode supervalorizar a sua autonomia frente ao quadro social ou pode tender ao contrário, e sentir a sociedade como extremamente determinada e sem chances de mudar.

Para tanto, para que tais conquistas se façam presentes, cada vez mais os professores precisam ser valorizados e contarem com espaços em suas próprias escolas para que debatam suas práticas. É nesse processo de trabalho coletivo que um conhecimento mais aprofundado sobre o sentido de uma leitura crítica pode ser desenvolvido. Afinal de contas, a presença do jornal na escola só tem sentido se for para que uma leitura crítica seja feita de suas notícias. É necessário, no entanto, reiterar: leitura crítica não pode ser confundida com uma simples opinião. A opinião não tem compromisso com a verdade, com a ciência. Podemos ter opiniões as mais diversas sobre quaisquer assuntos. Mas se nos dispomos a tentar entender uma determinada questão, não é mais uma simples opinião, surgida da vontade ou do gosto de cada um, que vai trazer esclarecimento. Indícios mais científicos precisam ser buscados. A opinião pode ser até uma questão de gosto. Pensamento crítico é outra coisa. Exige trabalho, estudo e, no caso da escola, exige gente reunida para conversar e aprender junto.


(*) Já publicado no Blog do Galeno.

Sobre perguntas e respostas

Escrito originalmente em março de 2002

Ouvir e fazer perguntas não significa negar o passado e suas respostas. Significa, sim, saber que esse passado é sempre relativo e está sempre diante de novas perguntas. São tais perguntas que condicionam a forma como vamos recortá-lo para entender as perguntas que incessantemente não param de surgir...

Tomar por referência a prática – e suas perguntas – não significa – nem poderia significar – cada um de nós se esvaziar de experiências e ideias anteriores para olhar a vida e viver cada um de seus momentos. Pelo contrário, toda a nossa história interfere na nossa maneira de observar e compreender a vida. O que não devemos – e até devemos insistir em lutar contra isto dentro de nós mesmos – é buscar modelos (estes, sim, ideais) para comparar com os fatos que se apresentam, no nosso dia-a-dia (vistos como imperfeitos, incompletos, equivocados se não corresponderem ao modelo ideal). Lidar com o que está posto concretamente é até mais sábio do que “dar murro em ponta de faca”, querendo mudar o que existe, sem levar em conta as circunstâncias.

Acreditamos que, para quem quer melhorar o mundo, para quem é teimoso e insiste em querer contribuir para a construção de um mundo mais humanizado e justo, diferente do que está aí, esta necessidade de tomar a prática como referência é até mais premente. Quando olhamos com mais atenção para o jeito  de ser das coisas é que podemos perceber com maior clareza suas fragilidades e pontos de maior resistência, quem é aliado, quem não é, quais as características mais e menos aparentes de cada situação, como cada fato se liga com o seu contexto, estas coisas... Se ficarmos presos ao modelo ideal de sociedade e quisermos moldar o cotidiano a ele, a tendência é o fracasso.

A forma idealizada de perceber o mundo, não raras vezes, faz com que cada um de nós se sinta desanimado de tentar mudar as coisas diante da forma como elas se apresentam. Sem sabermos olhar bem como as coisas funcionam, sem compreendermos bem o porquê da relação dos homens e mulheres entre si e deles com a natureza ser como é, tentamos mudar e, não raras vezes, fracassamos. Ora aumentamos desmedidamente as nossas possibilidades como sujeitos da História (imaginamos que tudo podemos e, como não podemos, de fato, desistimos e tornamo-nos pessimistas e desesperançados). Outras vezes, nem tentamos nada ou quase nada porque julgamos que somos vítimas de um contexto perverso, e nada ou quase nada podemos contra os poderosos e contra as forças constituídas.

Pois bem: nem vítimas nem sujeitos –  idealizados e a qualquer custo – da História! Seremos sujeitos da História, de verdade, se olharmos bem com esta História se desenrola, suas forças, seus personagens, seu movimento, suas tendências, suas versões, seus discursos, sua multiplicidade... Aí, sim, com base nos nossos sonhos, poderemos – e sempre coletivamente – ir transformando o status quo, estruturando uma nova forma de viver, melhor para cada um e para todos.

Em nome do prazer, eu e eu mesma contra mim

Em nome do prazer, eu e eu mesma contra mim

Escrito originalmente em 2008

Cedo, muito cedo ainda, acordava e, como de hábito, mesmo antes do delicioso café da Dinha, ia até a porta, buscava o jornal e coria de volta para a cama, para sorvê-lo, com o dia ainda por acabar de chegar pela janela, com as brumas ainda pairando, nítidas, sobre a Serra da Tiririca, que me espreitava, logo ali, deslumbrante.  Afinal de contas, era em suas páginas que encontraria a segunda leitura (a terceira, a quarta, por que não?) daquilo que vira na véspera à noite na TV. E no papel, o que não é pouco, pois a torna mais densa, leitura que, a partir de então, estaria aqui comigo, dentro, tomando meus pensamentos e minha humana necessidade de maior compreensão da vida e de seus tortuosos caminhos e atalhos. Nele leria, por cima e por dentro do que li, parando e pensando, junto com outros fragmentos de vida que já estavam lá dentro, habitando minha alma coletora de fatos e estudos, de vida mesmo, rememoraria pedaços de experiências que selecionei e que colorem meu espaço interior, e siguiria em frente – ou me deixaria paralisar por instantes, mais triste ou mais cheia de esperança, mais criativa ou mais cansada, diante do último absurdo da política ou da última expressão da violência urbana transformada em notícia.


Este foi um jeito de viver, uma prática que se repetiu por décadas, ano após ano, dia após dia, fazendo-me portadora de uma prática que necessitava do contato do olho com o papel, da mão com a tinta, para trazer as notícias sobre o mundo até dentro de casa, a informação para dentro de mim, as imagens de uma leitura para a minha própria leitura, fazendo-me caminhar mais um pouco ao encontro de mim mesma em minha vontade e compromisso de saber melhor do mundo, para nele interferir, como fosse possível, junto aos meus companheiros de caminhada, no trabalho de ajudar o outro, ainda jovem, a ler, enquanto eu mesma crescia na leitura do outro...


No contato com este papel recheado de imagens e palavras, atravessava o dia, sabendo que no dia seguinte lá estaria ele, novamente em minha porta, à espera de minha sede incessante da leitura do que ele me contaria, dando prosseguimento à história que vinha compondo para que eu destrinchasse, junto a outros leitores e outras leituras. Ler jornal no papel para mim era isto: começar naquela hora híbrida - meio madrugada, meio manhã -, tendo a ver com o barulho do entregador (naquele momento, meu maior e insuperável amigo) que o joga, para atravessar o jardim (a ser molhado por mim, é claro, um pouco mais tarde, pois que o vício original era outro, o da leitura, as plantas que aguentassem a sua sede um pouco mais...).

                    Tempo.


Assim foi e, devo confessar, por muitos e muitos anos. Até mesmo hoje, quando conheço bem mais e faço do estudo dos meandros da imprensa uma prioridade, até hoje há vestígios do antigo "vício". Daí, a angústia. E me perguntava sempre: o que devo dizer a mim mesma, com todo este prazer tão arraigado ao meu jeito de ser e viver, quando sei que, ali, diante daquele jornal diário, sou objeto de leituras escolhidas por outros, quando sei que a manchete poderia ser outra, quando sei que talvez o fato mais importante e decisivo da véspera poderia não estar no jornal que lia? Como amainar a fúria de minha razão solene e sábia diante do meu prazer encabulado, viciado num instrumento feito para contar a história mas que acaba por tecê-la? Como juntar, costurar, remendar, a minha porção racional que sabe, conhece, avalia, desconfia, busca, critica, à outra, já feita uma segunda natureza que corre em busca desse mentiroso, dia após dia?

Mais um tempo: não sei se para o bem ou para o mal, mas a razão esclarecedora anda submetendo a minha porção "Maria Antonieta" e dei de esquecer, até por mais de um dia, jogado, sob sol ou sob chuva, lá na porta de casa, o jornal, antes tão ansiosamente aguardado, quase como o meu despertador diário, a me sacudir para ingressar no mundo da informação. As fontes para o bem saber e bem viver são outras. Informação relevante advém de outras fontes. O jornal chega agora como elemento secundário, até groseiro, diante do que de fato vai pelo mundo... E, então, a mim mesma indago: quando será a hora de suspender a assinatura?