Em nome do prazer, eu e eu mesma contra mim
Escrito originalmente em 2008
Cedo, muito cedo ainda, acordava e, como de hábito, mesmo antes do delicioso café da Dinha, ia até a porta, buscava o jornal e coria de volta para a cama, para sorvê-lo, com o dia ainda por acabar de chegar pela janela, com as brumas ainda pairando, nítidas, sobre a Serra da Tiririca, que me espreitava, logo ali, deslumbrante. Afinal de contas, era em suas páginas que encontraria a segunda leitura (a terceira, a quarta, por que não?) daquilo que vira na véspera à noite na TV. E no papel, o que não é pouco, pois a torna mais densa, leitura que, a partir de então, estaria aqui comigo, dentro, tomando meus pensamentos e minha humana necessidade de maior compreensão da vida e de seus tortuosos caminhos e atalhos. Nele leria, por cima e por dentro do que li, parando e pensando, junto com outros fragmentos de vida que já estavam lá dentro, habitando minha alma coletora de fatos e estudos, de vida mesmo, rememoraria pedaços de experiências que selecionei e que colorem meu espaço interior, e siguiria em frente – ou me deixaria paralisar por instantes, mais triste ou mais cheia de esperança, mais criativa ou mais cansada, diante do último absurdo da política ou da última expressão da violência urbana transformada em notícia.
Este foi um jeito de viver, uma prática que se repetiu por décadas, ano após ano, dia após dia, fazendo-me portadora de uma prática que necessitava do contato do olho com o papel, da mão com a tinta, para trazer as notícias sobre o mundo até dentro de casa, a informação para dentro de mim, as imagens de uma leitura para a minha própria leitura, fazendo-me caminhar mais um pouco ao encontro de mim mesma em minha vontade e compromisso de saber melhor do mundo, para nele interferir, como fosse possível, junto aos meus companheiros de caminhada, no trabalho de ajudar o outro, ainda jovem, a ler, enquanto eu mesma crescia na leitura do outro...
No contato com este papel recheado de imagens e palavras, atravessava o dia, sabendo que no dia seguinte lá estaria ele, novamente em minha porta, à espera de minha sede incessante da leitura do que ele me contaria, dando prosseguimento à história que vinha compondo para que eu destrinchasse, junto a outros leitores e outras leituras. Ler jornal no papel para mim era isto: começar naquela hora híbrida - meio madrugada, meio manhã -, tendo a ver com o barulho do entregador (naquele momento, meu maior e insuperável amigo) que o joga, para atravessar o jardim (a ser molhado por mim, é claro, um pouco mais tarde, pois que o vício original era outro, o da leitura, as plantas que aguentassem a sua sede um pouco mais...).
Tempo.
Assim foi e, devo confessar, por muitos e muitos anos. Até mesmo hoje, quando conheço bem mais e faço do estudo dos meandros da imprensa uma prioridade, até hoje há vestígios do antigo "vício". Daí, a angústia. E me perguntava sempre: o que devo dizer a mim mesma, com todo este prazer tão arraigado ao meu jeito de ser e viver, quando sei que, ali, diante daquele jornal diário, sou objeto de leituras escolhidas por outros, quando sei que a manchete poderia ser outra, quando sei que talvez o fato mais importante e decisivo da véspera poderia não estar no jornal que lia? Como amainar a fúria de minha razão solene e sábia diante do meu prazer encabulado, viciado num instrumento feito para contar a história mas que acaba por tecê-la? Como juntar, costurar, remendar, a minha porção racional que sabe, conhece, avalia, desconfia, busca, critica, à outra, já feita uma segunda natureza que corre em busca desse mentiroso, dia após dia?
Mais um tempo: não sei se para o bem ou para o mal, mas a razão esclarecedora anda submetendo a minha porção "Maria Antonieta" e dei de esquecer, até por mais de um dia, jogado, sob sol ou sob chuva, lá na porta de casa, o jornal, antes tão ansiosamente aguardado, quase como o meu despertador diário, a me sacudir para ingressar no mundo da informação. As fontes para o bem saber e bem viver são outras. Informação relevante advém de outras fontes. O jornal chega agora como elemento secundário, até groseiro, diante do que de fato vai pelo mundo... E, então, a mim mesma indago: quando será a hora de suspender a assinatura?
Mais um tempo: não sei se para o bem ou para o mal, mas a razão esclarecedora anda submetendo a minha porção "Maria Antonieta" e dei de esquecer, até por mais de um dia, jogado, sob sol ou sob chuva, lá na porta de casa, o jornal, antes tão ansiosamente aguardado, quase como o meu despertador diário, a me sacudir para ingressar no mundo da informação. As fontes para o bem saber e bem viver são outras. Informação relevante advém de outras fontes. O jornal chega agora como elemento secundário, até groseiro, diante do que de fato vai pelo mundo... E, então, a mim mesma indago: quando será a hora de suspender a assinatura?
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