Publicado originalmente no site da Caros Amigos - em 12/05/2010
A semana, como de praxe, foi recheada de leituras. Muita TV também, porque sou noveleira das boas, e adoro uma entrevista... Política também é vício antigo e programa sobre música é sempre caçado - e não raras vezes - encontrado na calada das noites insones. Daí não saber ao certo - não duvido que a idade também contribua para isto - onde li ou vi uma frase que, de imediato, foi se reunir a outras tantas que guardo como lição. Quem souber o autor me avise, é um favor. A lição é a de que "nem todos têm talento para enxergar a realidade". Pois ficou martelando e eu não sabia que tão rapidamente a aplicaria à vida que chegava, desta feita recheada de dor e desamparo: as chuvas que inundaram a cidade, esta que, não sendo minha por nascença, adotei por especial encontro afetivo.
Devo confessar, em acréscimo, que uma outra reflexão veio se somar à ideia do tal raro talento de que trata o autor de que não me lembro o nome. Vem de uma sessão de análise onde eu pude perceber que existem situações que se repetem em nossa vida, situações que nem sempre as percebemos, até que um dia, sem mais nem menos (ou até com muito mais vida e muito menos defesa...), a enxergamos com clareza. Das vezes anteriores não se está preparado para ver, ou acumula-se vida para abastecer o olhar de capacidade de ver. É como se a pessoa vá se fortalecendo para viver o dia em que possa - junto aqui as ideias - ver surgir o talento glorioso que possa trazer lucidez para ver.
Também das sessões de análise surge um outro ensinamento oportuno: o de que a primeira medida para se solucionar um problema é saber-se com um problema a resolver. Não é à toa que o alcoólatra começa a enfrentar sua própria dificuldade diante da bebida quando se percebe como tal. Antes, nada feito. E olhe que nem mesmo assim - seja com relação a que vício for - a coisa é simples...
E o que tudo isso tem a ver com o sofrimento que se abateu sobre uma parcela sofrida dos pobres de minha cidade?
Pausa para pensar. É preciso tempo, é necessário bom senso. É mesmo questão para pensar com tempo.
O que me assustou diante do que sucedeu - a morte, o desassossego, o desamparo, a aflição, a penúria, a insegurança, a perda da própria história, e tantas quantas outras expressões que puderem vir em meu socorro para significar o que sinto diante da tragédia que atingiu tantos pobres -, o que me assustou foi o que ouvi de inúmeras pessoas que, como eu, são feitas de carne e osso, estudaram, têm a sua casa segura, não sofreram perdas e etc. e tal. De muitas delas ouvi palavras que transformaram as vítimas em autores e responsáveis pela tragédia que se abateu sobre suas vidas. Exponho aqui uma dolorosa síntese:
- "Quem mandou querer viver no miolo da cidade?"
- "Vai me dizer que não sabiam do perigo..."
- "Quando o governo quer tirar, quem quer sair? Ninguém."
- "Pobre é bicho teimoso mesmo... por que não escolheu outro lugar para morar?"
O que me ocorre pensar é que esta nossa chamada "classe média" não pode ver (por enquanto, eu espero) o que de fato acontece. Se cada olhar levasse para os corações e mentes de quem assim fala e pensa a perversidade da desigualdade social como produtora de todos estes males, um "AA social" seria imediatamente providenciado para que a única solução para o caso - a busca da justiça social - fosse ferrenha e coletivamente buscada para que o fosso econômico entre pobres e ricos deixasse de existir. Ou seja: o que sinto - e com quanta dor! - é que a cegueira que se coloca para os não pobres que assim pensam - é providencial. É a saída que encontram, num nível inconsciente, imagino, para viverem o dia seguinte, para saírem de casa e encontrarem os miseráveis que se espalham pelas ruas, podendo prosseguir, continuando a caminhar, sem caírem por terra, dominados pela dor da consciência enfim encontrada, até tomarem fôlego para irem em busca de saídas, tomando para si a tarefa de construírem uma sociedade humanizada.
É o que sinto. É o que me vi no dever de falar. E publicamente. Se ouvi palavras tão medonhas, perdoem-me se exponho a mim e as minhas. Nelas acredito. Para mim, a busca de talento para construir uma nova realidade também passa pelas palavras.
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