domingo, 26 de junho de 2016

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ

(Foto de minha mãe, Ana, na sala de minha casa)
(ESCRITO EM 26 DE JUNHO DE 2014)


Filhos meus, não é para se emocionarem, é apenas para continuarmos juntos, também nesta reflexão. O mundo se move e a ciranda coloca cada qual num certo lugar numa certa hora por um determinado tempo. A gangorra sobe e desce. Juntos, me parece, o movimento fica mais suave. Ou talvez nem seja isso, talvez apenas torne-se mais possível de ser vivido amorosamente.
É que ando com saudade de todos os meus velhos... E vejam que emocionante Anna Rodrigues acaba de me mandar. Impactante, mas verdadeiro.
Limpinho como água de uma boa fonte.
Na minha forma cá e lá de viver e sentir, coloco meu corpo, que naturalmente envelhece, para se entender com minha alma - ora juvenil e inquieta, ora crente que tem respostas - e me emociono inteira ao ler este texto que me vejo compelida a compartilhar com vcs.
"PAIS DE MEUS PAIS
Há uma quebra na história familiar quando as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando os filhos se tornam pais de seus pais.
É quando os pais envelhecem e começam a trotear como se estivessem dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso. É quando aquela mãe que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinha. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar. É quando aquela mãe, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe. É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.
E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz. Todos os filhos são pais da morte de seus pais. Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta. E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.
Uma das primeiras transformações acontece no banheiro. Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro. A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas. Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes. A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões. Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.
Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente? Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete. E feliz do filho que é pai de seus pais antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.
Meu amigo Zé acompanhou o pai até seus derradeiros minutos. No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:
- Deixa que eu ajudo.  
Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo. Colocou o rosto de seu pai contra seu peito. Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo. Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável. Embalou o pai de um lado para o outro. Aninhou o pai. Acalmou o pai. E apenas dizia, sussurrado:
- Estou aqui, estou aqui, pai!
O que os pais querem apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali."

(Publicado no jornal Zero Hora)


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