segunda-feira, 6 de junho de 2016


cRIANÇAS PEQUENAS BRASILEIRAS...
... quem mesmo?
(algumas suposições)
Primavera, quase verão, de 2015


Por Carmen Lucia Pessanha[1]


Há  cerca  de  um  ano, tive  a oportunidade  de  ler   considerável  número   de 5 mil    pequenos textos de crianças brasileiras, por força de  uma atividade profissional  que envolvia  avaliação de sua capacidade de escrita.  A tarefa restringia-se a, diante de determinados critérios pré-estabelecidos pela coordenação geral do projeto, verificar o nível de letramento da criançada, criançada esta que frequentava, na  ocasião, classes   de até o terceiro  ano do Ensino Fundamental de  escolas públicas  espalhadas  por todo o território nacional.
De minha parte, no entanto, para além da classificação individual de cada alfabetizando ante os parâmetros estabelecidos, à medida que fui fazendo a leitura, deixei-me seduzir pelo que diziam os pequenos e, por minha própria conta e risco (e interesse e imaginação e compromisso...), fui montando um anedotário[2] daquilo que se mostrava mais visível, constante, marcante no que expressavam, ao produzir seus escritos. Mas não só isso. O diferente e o inusitado também foram registrados, de modo a que eu pudesse, ao final, ter uma visão, a mais ampla possível, do que traduziam aquelas falas (e por suposto, do que mostravam pensar e sentir aquelas crianças): o que lhes era comum, o que entre elas parecia ser mais raro, coisas assim...
A minha larga experiência como educadora me dizia, a cada momento – o que se acentuava mais e mais à medida que efetuava a leitura – que eu estava diante de um material precioso – capaz de fornecer indicações de como vêm se constituindo as nossas crianças em seus primeiros passos quanto a seus jeitos de pensar e agir. Ou do que andam lhes ensinando e que elas guardam para si como entendimento que vão começando a construir a respeito do mundo e de suas gentes. Ou um tanto das duas coisas. Ou o que fosse. Valia conferir, pensei.
A proposta a que as crianças foram submetidas foi a de que escrevessem uma breve história em torno de um personagem frequente no imaginário infantil – a bruxa. Mas tratava-se de uma bruxa na contramão de seu tradicional perfil, pois que era uma bruxa capaz de empreender boas ações. Desse modo, o enredo a ser criado, além de trazer uma contradição a ser enfrentada, de saída, pelas crianças (uma bruxa “fora da ordem”), envolvia valores como bondade e maldade, certo e errado, o que deveria dar margem a que falassem de si, de suas crenças, daquilo em que acreditavam, da “sua bruxa boa” em sua própria vida, entendimento e vontade.
O fato é que as crianças mostraram muitos dizeres comuns, a ponto de irem me conduzindo, levando-me a crer ser o caso mesmo de reunir as suas falas e, por seu intermédio, traçar um esboço acerca do que seus escritos indicavam como possibilidades. Até porque, pensamento e linguagem são entrelaçados e a escrita existe de modo a trazer à luz o pensamento de seu autor. O quadro que, gradativamente, se foi formando era o de que havia uma destacada parecença entre o que as crianças diziam; uma linha de identidade que parecia lhes aproximar como um grupo com determinadas homogeneidades em termos de crenças, desejos, entendimentos, concepções, valores... E, se assim parecia, seria preciso confirmar, reunir informações e utilizar os resultados da análise como material a ser estudado por nós, professores, em nossa condição de fazedores da educação em nosso país.
A propósito e a título de ilustração, quanto ao vínculo indissociável entre pensamento e linguagem, destaco aqui que, dentre tantos textos que li mas de que não me ocupei em registrar, creio ter sido bem o caso das redações destas duas crianças sobre as quais passo a falar. Da primeira que, ao criar a história na qual havia dois personagens – a bruxa e um menino – anotei os seguintes fragmentos:
·         “ela ficou amiga de um são paulino”;
·         “foram ver o jogo do São Paulo na casa dela”;
·         “o menino ganhou uma camisa do São Paulo”;
·         “o São Paulo ganhou de 1X0”;
·         “depois conversaram sobre o São Paulo”;
·         “depois comeram e foram dormir”.
Praticamente sem medo de errar, durante a leitura, cheguei a dar como certo que estava diante de um mais que fiel torcedor do São Paulo, já que quem escreve costuma estar inteirinho naquilo que põe no papel.
A segunda criança, também dando-se a conhecer por meio de suas palavras, colocou como boa ação de sua bruxa a de que ela fez duas mágicas, a de que as mães não batessem nas filhas e a de que os homens não se machucassem enquanto trabalhavam. Terei exagerado em minha percepção ao ver muita vida por trás de tais desejos? Um possível cotidiano encharcando aquela vontade?
Quero dizer com tais exemplos que entendo ser bastante possível termos uma ideia aproximada do que pensam nossas crianças por meio do que dizem. E, sendo assim, julgo ter significativo valor o presente material, devendo ser estudado por quem trabalha com formação de professores, sejam profissionais atuantes na própria educação infantil ou nas séries iniciais do Ensino Fundamental, sejam dos demais níveis da Educação escolar, inclusive no âmbito da formação acadêmica na Universidade. E, por que não?, pelas famílias.
A compreensão de que a prática pode e deve ser vivida, observada, registrada e analisada para poder gerar mudanças é uma das funções primordiais de quem pesquisa e tem compromisso com a mudança. Trata-se de uma maneira de viver na qual a reflexão sobre a prática é um método de aperfeiçoar o vivido e torná-lo mais próximo daquilo que se tem por norte. Por isso, não me furtei e fui deixando-me levar pela sedução exercida fortemente pelos milhares de textos lidos.
Quanto a esse percurso, é fundamental insistir em que, ao iniciar o trabalho, não estava imbuída de nenhuma “segunda intenção”, por mais que o meu olhar de pesquisadora estivesse – e esteja – incorporado ao meu cotidiano e à minha forma de viver – e trabalhar –, seja em que âmbito for. Foi o próprio trabalho que, em seu desenrolar, “tomou a iniciativa” de me convidar ao diálogo. Foram as crianças e seus ditos que foram gerando o movimento para o estudo cujos resultados aqui relato. De minha parte, apenas respondi ao apelo. Assim é que, do que eu lia, é que foram surgindo algumas questões:
·         Como foi visto o fato inusitado de uma bruxa ser boa?
·         De acordo com o que disseram, o que é ser bom para as crianças?
·         A meninada mostrou indícios práticos do que seja ser bom?
·         Há ideias que apareceram como tendência naquilo que expuseram?
·         Há alguma marca feminina no que foi dito?
·         E a presença de ideias incomuns, existe?
Tratando-se, como estou a dizer, de um trabalho que nasceu sem planejamento prévio, o presente estudo não se fez com base em nenhuma literatura especialmente selecionada, revista e consubstanciada para respaldar as análises feitas. Nenhum material teórico foi recolhido especificamente para, com base em suas proposições, categorias e conceitos, servir de parâmetro para aguçar meu olhar numa ou noutra direção na minha relação com o material de estudo. Ocorre-me aqui uma historinha que conheço. Pelo que me lembre, era mais ou menos esta: uma funcionária recebeu uma incumbência e, dando-a por concluída, foi entregá-la a seu chefe. Este, surpreso pela rapidez com a qual a tarefa foi cumprida, duvidou da qualidade da atividade recém encerrada e a questionou: “Já? Quanto tempo levou para concluir a tarefa? Pouco tempo, não? Ao que ela respondeu, com tranquilidade: “Pouco tempo, não, senhor, gastei a vida inteira para conseguir terminá-lo. Aparentemente, fica a sensação de tê-lo aprontado bem rápido, mas não é o caso, nem de longe. Com tudo que fui aprendendo e estudando pela vida afora é que consegui dar conta da tarefa agora terminada sem utilizar grande volume de meu tempo neste instante. A minha capacidade veio sendo feita, aos poucos, ao longo da vida inteira”
É exatamente o meu caso quanto teço considerações sobre o que li. O que acumulei, fiz e refiz em estudos anteriores, em experiências anteriores, em momentos os mais diversos, também anteriores, esteve dentro de mim, todo o tempo, direcionando meu modo de ver, perceber e entender.
Na verdade, minhas anotações adormeceram por aqui, em minha máquina, bem quietas, em estado de espera, sem que eu lhes desse a devida atenção durante todo o ano. Vez por outra pensava estar na hora de escrever a respeito. Mas outras urgências se apresentavam e as expulsavam de meu caminho, até uns poucos dias atrás. Pois agora, antes de concluir o ano de 2015, como que a limpar gavetas e me aprumar para o novo ano que está por vir, reencontrei meu “anedotário”, prontinho, me chamando para ser estudado e tornada pública minha análise a seu respeito. Sentei e escrevi. E estou muito feliz por ter pensado e escrito o que pensei e escrevi.
E aqui está um certo jeito de uma certa professora ler o que disseram certas crianças, muitas, muitas, muitas mesmo, de suas vidas em torno de uma bruxa e de muitos sentimentos, desejos, expectativas e frustrações. Delas e minhas. Até porque, a lógica de haver uma relação dialética entre o que se escreve e o que se pensa e sente não é exclusividade dos meninos e meninas de quem li histórias. A eles devo, inclusive – e com ênfase –, agradecer pela chance de me colocarem diante de mim mesma e, estimulada por suas falas, rever e expor minhas sensações e  entendimento sobre tudo que li. Eles inteiros no que disseram, eu inteira no que digo aqui. De um lado e de outro, vozes que se entrecruzam, formando-se sujeitos pela força de um diálogo surgido da  inteireza da mútua interveniência.
Agora, é a vez do leitor, o terceiro vértice deste triângulo em relação de entrega. À leitura, pois, amigos! E às trocas, por favor!
Carmen

 1.                           A bondade
Os nossos escritores levaram adiante a tarefa de terem diante de si uma bruxa boa e sobre ela escreverem alguma aventura que desse conta das conjecturas que fizeram a seu respeito. Em minha leitura, nenhum estranhamento foi notado quanto à fuga à “ordem natural das coisas”. A julgar pelos escritos e pela maneira como os li, ninguém estranhou o fato de as bruxas serem boas. Tomei-me de alegria ao perceber que o insólito pode ter lugar e que o espírito infantil – daquele numeroso grupo – está preparado para recebê-lo sem questionamentos. Ao que parece, para aqueles pequenos autores, não há um estrito nem estreito jeito para se existir. A diversidade parece ter lugar para florescer ou elas, as crianças, ainda não estão contaminadas por fórmulas restritivas e uniformes do que é ser bruxa. Pelo que eu, ampliando minha análise, imagino também valer para meninos e meninas, homens e mulheres, formigas, elefantes ou coelhos. Até mesmo jibóias – sejam elas vegetais ou animais.
Em acréscimo, devo dizer ainda que, do ponto de vista de quem vê o mundo em suas contradições, foi emocionante encontrar uma criança cuja bruxa, que “sempre, sempre era boa, um dia fez uma maldade”. Bruxas, então, não só podem fugir à regra e serem boas, como também podem ser boas sem eliminarem por completo a sua capacidade de colocarem em prática uma certa maldade, vez por outra. Mesmo que tenha sido por uma voz dissonante, havia ali alguém que não separa o joio do trigo em grupos diferentes, alguns bons, outros maus, mas os humaniza, compondo-os com doses de uma coisa e outra.
Mas vamos às bondades das bruxas...
Nem sempre o concreto – O primeiro ponto que quero enfatizar é o de que nem sempre as bondades da protagonista das histórias são detalhadas. Em percentuais bem similares, o grupo se divide entre: a) aqueles que não explicitam de que maneira a bruxa demonstra ser boa; e b) aqueles outros que o fazem, contando alguns detalhes de suas bondades. Muitas crianças falam apenas do quanto a bruxa é boa; do quanto é ótima; do quanto é bonita; do tanto que é boazinha; ou do tanto que é maravilhosa; sem detalhar a forma de ela concretizar suas boas ações. A bruxa tem a qualidade da bondade e ponto final, já está descrita suficientemente a sua forma de ser boa, sem se dizer a forma de tal bondade ser posta em vida vivida.
A bondade em atos – Quando descrevem a bondade de suas bruxas, as crianças têm um discurso bastante homogêneo. A bruxa das nossas crianças mostrava-se milagreira, fazia de tudo, desde “quando via alguém triste, colocar a felicidade em nós”; até “transformar notas ruins em notas boas e ficar amiga da criança para sempre”; e ter feito “esta prova legal pra gente aqui da sala”. A se registrar, no entanto, como tendência mais que notada, majoritária, persistente, é a de que ser bruxa boa é ser bruxa que dá presentes. Bruxa boa presenteia – essa é a regra geral. E o presente mais presente, o mais falado são doces, muitas balas e, em destaque, chocolates.

A pensar... – A forma concreta que adquire a bondade da bruxa me parece preocupante e digna de ser estudada por todos nós, educadores. Ser bom é dar coisas. Vale pensarmos: ser bom é dar coisas? Ser bom pode ser restringido a uma ação inteiramente vinculada ao mundo do consumo, ao mundo do que é material? Dar de si –  de sua criatividade, de seu tempo, de  seu próprio trabalho – não apareceu em nenhuma redação. Fora o tempo gasto por algumas bruxas quando faziam seus milagres, a prática da generosidade se esgotava em dar a alguém alguma coisa que se comprou em algum estabelecimento comercial. A relação entre quem é bom e quem recebe o ato bondoso passa necessariamente por um terceiro que faz a mediação entre eles, vendendo um objeto material que cumprirá o seu papel de ser expressão de um ato de bondade. E pior: como andam as nossas noções de saúde e de adequação alimentar? Ser bom é fornecer alimentos carregados de açúcar às nossas crianças? E desde tão pequenas, formando-lhes hábitos contrários a uma alimentação saudável? Mais do que preocupante num mundo em que a saúde depende em grande medida do que é consumido como alimento.
2.                         As idealizações
O sonho – Uma visão romantizada da vida perece ser a mais comum entre nossos pequenos autores. É quase unânime o final das histórias com a expressão “foram felizes para sempre”. Fosse quem fosse – bruxa e menino, bruxa e bicho, bruxa e outras bruxas, bruxa e bruxo, bruxa e família, bruxa e vizinhos... – mais cedo ou mais tarde, por mais que tivessem passado pelas mais diversas peripécias, por mais que o desenrolar da história houvesse trazido antagonismos entre os personagens, o final quase sempre era um só – todos os personagens irmanados numa paz definitiva, na felicidade enfim alcançada, na superação de sofrimentos, fossem eles quais fossem. Ser feliz para sempre é a ordem geral do enredo, é o final prospectado e realizado, a qualquer custo.  Mesmo “a menina que não gostou da bruxa, no final fez as pazes e foram felizes para sempre”. Mesmo para “a bruxa que sofreu com as maldades de suas irmãs bruxas”. Mesmo para “a bruxa que se vingou do menino que a maltratou muito”.
A pensar... – Ao que parece, para nossas crianças, ainda tão iniciantes em sua vida, a vida é como um trajeto que, em algum momento, traz a felicidade ao encontro de cada um. O processo do viver não é, ao que parece, um misto, bem misturado, de momentos que contêm amarguras e também alegrias. A imagem que me permito fazer é de que, para elas, já começa a se ensaiar a vida como uma linha reta onde um milagre, mais cedo ou mais tarde, acontecerá e a transformará. Por mais inverossímil que possa parecer, algum milagre chega – mais cedo ou mais tarde – e transforma o curso da história, trazendo a paz e a união. E um milagre vindo de fora, de alguém que não seja o próprio sujeito. Não parece haver esforço por parte de quem vive “a história” para que as situações evoluam e se transformem. Será ainda, para as meninas, quando feitas mulheres, o príncipe encantado? E para os meninos, o que será?  
Fico a imaginar que talvez esteja aí, tão cedo, iniciando-se uma ilusão que, mais cedo ou mais tarde, será descoberta em sua impossibilidade, transformando a esperança em descrença e desilusão.  A vida vai sendo encaminhada de uma maneira tal que ao futuro cabe trazer o que fará cada qual feliz – um bom trabalho, o sucesso financeiro, a realização profissional, o encontro de um grande amor... O sonho sendo colocado em substituição à realidade, realidade que é construída, queiramos ou não mediante nosso próprio esforço e que não pode ser confundida com um estado definitivo de bem-estar, mas que traz conflitos, dúvidas, alegrias, num movimento incessante. E movimento este que agrega, reúne, articula nossas questões individuais e aquilo que nos rodeia, seja em Sergipe, na esquina de casa ou em Beiruti. Somos a integração de nossa individualidade com o social que também e indissociavelmente nos compõe.  Tom já nos ensinou que “é impossível ser feliz sozinho”, o que para mim, mais até do que um entendimento romantizado de sua lição, envolvendo apenas um par de amantes, é tido e havido como a impossibilidade de cada um ser feliz sem a dimensão da Humanidade inteira dentro de si. O outro mora dentro de nós, seja ele um jovem terrorista ou suas vítimas, o menino negro assassinado pela polícia, o político corrupto ou o herói nacional.
Importantíssimo ressaltar, no entanto, e a me fazer crer que nada é definitivo e de um jeito só, sempre, é o que pude ler em dois textos nos quais as crianças afirmavam simplesmente que os personagens “assim viveram”, sem o “para sempre” a concluir com ar definitivo as suas historinhas. É verdade que pouquíssimos demonstraram não viver sob o predomínio de uma visão idealizada, mas, de todo modo, ela se fez presente e nos confirma que, por menor que seja, há sempre uma dimensão questionadora, revolucionária mesmo, ainda que em estágio embrionário ou incipiente no conjunto das coisas do mundo real, como vistas pelos nossos infantes.

3.                         Os valores
Na vida, desde que se nasce, aprende-se. Contrariamente a uma visão puramente inatista ou ambientalista, o conhecimento se faz pela interação do sujeito com o seu meio. Na perspectiva de que há uma viva relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, ambos, sujeito e objeto, têm esta característica em comum: ambos são situados e datados. E, na escola, desde quando as crianças começam a frequentar as turmas de Educação Infantil, vão incorporando valores, costumes, maneiras de ser e de se expressar. Importa, pois, saber o que andam as crianças expondo de si próprias, de tal maneira que possam ser detectados sistemas de valores que confirmem ou sigam na contramão de uma postura humanizada e humanizante.
Bem sabemos que o capitalismo é intrinsecamente impeditivo da universalização da dignidade humana, promovendo a miséria e a ausência ou precariedade de direitos para a maioria da população e que, em seu contexto, a escola tende a repetir a lógica perversa da sociedade em que se insere.
É bem verdade que existem educadores comprometidos, em maior ou menos grau, com a transformação dessa sociedade numa sociedade justa e humanizada, mesmo que essa intenção não seja sentida e muito menos proclamada pela maioria, nem dentro nem fora da escola. Assim, mesmo não sendo a escola, por si só, a instituição desencadeadora do processo de humanização do Homem, ela pode criar algumas formas possíveis de intervenção nessa direção.
Cada escola contém elementos contraditórios, forças, mesmo que pouco nítidas, que se opõem, elementos arcaicos e avançados, desejos amortecidos, desejos de mudança, desejos de permanência, desejos nem descobertos... A instituição “pura”, que alguns podem idealizar, com os seus profissionais harmonicamente seduzidos por uma mesma ideia motriz, a de humanizar o homem de que falamos, só existe no desejo de alguns que têm tal intenção, mediante sua ação pedagógica.  Na vida mesma não há espaço para tal pureza de intenções, sem nenhuma força que a ela se oponha ou, no mínimo, que a ela atribua outras tonalidades, mais e menos fortes.

A pensar...
Assim entendendo, pelo menos dois valores merecem ser repensados a partir do que disseram as nossas crianças escritoras:

·         A posição econômica (ser rica) como forma de bem existir (e até se impor e/ou vingar) – Assim disse uma criança ao retratar o que falou uma bruxinha para se vingar das outras bruxas que queriam continuar a ser más: “Moro num prédio lindo, sou rica e famosa. Fiquem aí, suas chatas, perdedoras...”[3]
·         Um possível preconceito contra a velhice – “Uma bruxinha era boa, mas foi envelhecendo e aí foi ficando má”.  De minha parte, não consegui deixar de ver um sorriso em minha face recebendo esse veredicto infantil.  Ou seja: além das dores (físicas) que chegam junto com o envelhecimento, ainda há a possibilidade de nossa porção mazinha se agigantar dentro de nós? Seria trágico se não fosse cômico...[4]

4.                         A religião
A julgar pelo que pude ler e constatar, é surpreendente a ausência quase que generalizada de elementos religiosos nas falas das crianças. Religiosos, melhor dito, em sentido estrito, pois que, pode ser que exista a presença de elementos seculares mas tratados religiosamente, sem a devida compreensão, mas seguidos “com fé”. Mas ritos, crenças, dogmas, que pudessem compor o ideário de alguma Igreja, o seu conjunto de pensares e práticas, não foram utilizados pelas crianças em suas narrativas.  Apenas uma criança falou diretamente de Religião; e uma outra me fez lembrar de uma atitude bastante comum no catolicismo, mesmo não tendo falado diretamente dele.
A pensar... – Mesmo que de maneira extremamente reduzida, tanto o conteúdo que indica a presença do catolicismo quanto o que da religião evangélica – presentes no que as crianças disseram – sob o meu ponto de vista, nos deve levar a refletir:
·         Uma criança criou a sua bruxa de um jeito em que ela ficou rica para poder dar dinheiro aos pobres. Ou seja, bem fiel à lógica do catolicismo, a bruxa passaria a exercer a caridade, distribuindo parte de sua própria riqueza. Pobres continuariam pobres e ela seria aquinhoada com o bem-estar que “a riqueza” traz e poderia ser boa, generosa, fazendo o bem para quem escolhesse. A desigualdade permanece, apenas com uma pessoa eleita para distribuir o que lhe aprouvesse para os demais.
·         Houve também a presença de uma bruxinha evangélica. Como prova de seu arrependimento pelas maldades feitas até ali, ela “leria a bíblia todos os dias e, também diariamente, passou a orar na igreja”. Como orar sempre aparece como fala típica dos evangélicos, diferentemente dos católicos que sempre preferem a palavra rezar, fiquei a supor que essa criança vive num ambiente de evangélicos, no qual a leitura da bíblia é por demais valorizada.


5.                         Algo a mais...
O caráter surpreendente das crianças pôde ser vivido por mim com intensidade, entusiasmo e gratidão. Uma alegria tomar contato com o que expunham de si e de suas vidas, desde aqueles que escreviam incansavelmente, tomando todos os espaços do papel como que a demonstrar que tinham muito a dizer; até aquelas que pareciam estar ocas de palavras, quase deixando o papel todo em branco, mas que, de repente surpreendiam chamando, por exemplo, aranha de aracnídeo; ou umas outras tantas que, sem escrever nenhuma palavra com sentido já conhecido pelo leitor, apenas rabiscos de todo o tipo, insistiam em nos fazer acreditar em que entendiam, que percebiam, que existiam e queriam ser ouvidas por meio de sua inexpressiva expressão ou (como julgo mais fiel ao fato), de sua mais que expressiva expressão de uma sua ainda impossibilidade de se expressar – fosse para falar de bruxas, de cadernos, do sol, da chuva ou de sua cidadania ainda tão precariamente em construção, e não por sua própria responsabilidade.
Talvez a mais emocionante e doída fala que pude ler foi a de uma criança que esperava que “a bruxa fizesse a mágica dela aprender a ler”. Já uma das mais animadoras foi a de uma menina que simplesmente escreveu EU NÃO SEI, demonstrando coragem, possibilidade de se expor sem riscos, sinceridade no trato com um problema que se apresentava ali para ela resolver com seus parcos recursos – o de escrever uma história. Não se fez de rogada, não saiu pela tangente, não dissimulou, apenas disse de seu momento naquele instante. Para mim, deu-me a impressão de ser uma pessoinha que começa a saber de si e ensaia um trato com as questões da vida sem grandes temores. Aquela atitude sã de quem mira o outro de uma mesma altura. Olhares parelhos. Dando início ao enfrentamento da situação, anunciando tão simplesmente o seu julgamento,  pareceu-me demonstrar uma forma de quem começa a trilhar um bom caminho para viver a vida onde muitas vezes, nós, mesmo já adultos, precisamos de um tempo para saber qual o próximo passo a dar para seguir em frente de um modo menos sombrio, mais humano, mais justo e feliz.

REFERÊNCIAS 
(durante toda a vida, as mais fiéis)

ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1a. reimpressão. 2003.
BAKHTIN, M.M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992b.

CARDOSO, Miriam Limoeiro. A periodização e a Ciência da História. 1977. mimeografado.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática. São Paulo, 1994.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler (34ª edição). São Paulo: Cortez Editora, 1997.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1979.

FRIGOTTO. Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva. São Paulo. Cortez
Editora e Editora Autores Associados.1986.Civilização Brasileira, 1981.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura.Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro. Editora Paz e terra Ltda., 1985.
LOZZA, Carmen. Escritos sobre jornal e educação.olhares de longe e de perto. São Paulo: Global Editora, 2009.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura (3ª edição). São Paulo: Cortez Editora, 1996.
PESSANHA, José Américo. Filosofia e Modernidade: racionalidade, Imaginação e ética. Cadernos ANPED. Porto Alegre. 1993 (4): 7-36, 1993






[1] Pedagoga, mestra em Educação, professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (Faculdade de Educação) e da Rede de Ensino do Estado do Rio de Janeiro. Acadêmica e literariamente também conhecida como Carmen Lozza. E-mail: clozza@uol.com.br
[2] Termo típico dos tempos do escolanovismo, que significa a reunião de pequenos e objetivos registros sobre a vida escolar dos alunos. Aqui, no nosso caso, o utilizo como o conjunto das expressões utilizadas pelas crianças em seus escritos.
[3] Fazer Ciência não é se descolar do humor. Tal fala me pareceu a própria Senhora dos Absurdos, do ator     Paulo Gustavo.
[4] Outra historinha que me fez rir foi a de uma criança que falou de uma bruxa que recebeu o beijo de um bruxo muito feio. “O bruxo feio veio a beijou a bruxinha. Ela viveu de novo e foram felizes para sempre”. Ou seja, o “mercado” está tão ruim para as mulheres que até um bruxo – e feio – a acorda para a felicidade.

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