cRIANÇAS PEQUENAS BRASILEIRAS...
...
quem mesmo?
(algumas
suposições)
Primavera, quase verão, de 2015
Há cerca de um ano, tive a oportunidade de ler o considerável número de 5 mil pequenos textos de crianças brasileiras, por força de uma atividade profissional que envolvia a avaliação de sua capacidade de escrita. A tarefa restringia-se a, diante de determinados critérios pré-estabelecidos pela coordenação geral do projeto, verificar o nível de letramento da criançada, criançada esta que frequentava, na ocasião, classes de até o terceiro ano do Ensino Fundamental de escolas públicas espalhadas por todo o território nacional.
De minha parte, no entanto, para além da classificação individual de
cada alfabetizando ante os parâmetros estabelecidos, à medida que fui fazendo a
leitura, deixei-me seduzir pelo que diziam os pequenos e, por minha própria
conta e risco (e interesse e imaginação e compromisso...), fui montando um
anedotário[2] daquilo que
se mostrava mais visível, constante, marcante no que expressavam, ao produzir
seus escritos. Mas não só isso. O diferente e o inusitado também foram
registrados, de modo a que eu pudesse, ao final, ter uma visão, a mais ampla
possível, do que traduziam aquelas falas (e por suposto, do que mostravam
pensar e sentir aquelas crianças): o que lhes era comum, o que entre elas
parecia ser mais raro, coisas assim...
A minha larga experiência como educadora me dizia, a cada momento – o
que se acentuava mais e mais à medida que efetuava a leitura – que eu estava
diante de um material precioso – capaz de fornecer indicações de como vêm se
constituindo as nossas crianças em seus primeiros passos quanto a seus jeitos de
pensar e agir. Ou do que andam lhes ensinando e que elas guardam para si como
entendimento que vão começando a construir a respeito do mundo e de suas
gentes. Ou um tanto das duas coisas. Ou o que fosse. Valia conferir, pensei.
A proposta a que as crianças foram submetidas foi a de que escrevessem
uma breve história em torno de um personagem frequente no imaginário infantil –
a bruxa. Mas tratava-se de uma bruxa na contramão de seu tradicional perfil,
pois que era uma bruxa capaz de empreender boas ações. Desse modo, o enredo a
ser criado, além de trazer uma contradição a ser enfrentada, de saída, pelas
crianças (uma bruxa “fora da ordem”), envolvia valores como bondade e maldade,
certo e errado, o que deveria dar margem a que falassem de si, de suas crenças,
daquilo em que acreditavam, da “sua bruxa boa” em sua própria vida,
entendimento e vontade.
O fato é que as crianças mostraram muitos dizeres comuns, a ponto de
irem me conduzindo, levando-me a crer ser o caso mesmo de reunir as suas falas
e, por seu intermédio, traçar um esboço acerca do que seus escritos indicavam
como possibilidades. Até porque, pensamento e linguagem são entrelaçados e a
escrita existe de modo a trazer à luz o pensamento de seu autor. O quadro que,
gradativamente, se foi formando era o de que havia uma destacada parecença
entre o que as crianças diziam; uma linha de identidade que parecia lhes
aproximar como um grupo com determinadas homogeneidades em termos de crenças,
desejos, entendimentos, concepções, valores... E, se assim parecia, seria
preciso confirmar, reunir informações e utilizar os resultados da análise como
material a ser estudado por nós, professores, em nossa condição de fazedores da
educação em nosso país.
A propósito e a título de ilustração, quanto ao vínculo indissociável
entre pensamento e linguagem, destaco aqui que, dentre tantos textos que li mas
de que não me ocupei em registrar, creio ter sido bem o caso das redações
destas duas crianças sobre as quais passo a falar. Da primeira que, ao criar a
história na qual havia dois personagens – a bruxa e um menino – anotei os
seguintes fragmentos:
· “foram ver o jogo do São Paulo na casa dela”;
· “o menino ganhou uma camisa do São Paulo”;
· “o São Paulo ganhou de 1X0”;
· “depois conversaram sobre o São Paulo”;
· “depois comeram e foram dormir”.
A segunda criança, também dando-se a conhecer por meio de suas palavras,
colocou como boa ação de sua bruxa a de que ela fez duas mágicas, a de que as
mães não batessem nas filhas e a de que os homens não se machucassem enquanto
trabalhavam. Terei exagerado em minha percepção ao ver muita vida por trás de
tais desejos? Um possível cotidiano encharcando aquela vontade?
Quero dizer com tais exemplos que entendo ser bastante possível termos
uma ideia aproximada do que pensam nossas crianças por meio do que dizem. E,
sendo assim, julgo ter significativo valor o presente material, devendo ser
estudado por quem trabalha com formação de professores, sejam profissionais
atuantes na própria educação infantil ou nas séries iniciais do Ensino
Fundamental, sejam dos demais níveis da Educação escolar, inclusive no âmbito
da formação acadêmica na Universidade. E, por que não?, pelas famílias.
A compreensão de que a prática pode e deve ser vivida, observada,
registrada e analisada para poder gerar mudanças é uma das funções primordiais
de quem pesquisa e tem compromisso com a mudança. Trata-se de uma maneira de
viver na qual a reflexão sobre a prática é um método de aperfeiçoar o vivido e
torná-lo mais próximo daquilo que se tem por norte. Por isso, não me furtei e
fui deixando-me levar pela sedução exercida fortemente pelos milhares de textos
lidos.
Quanto a esse percurso, é fundamental insistir em que, ao iniciar o
trabalho, não estava imbuída de nenhuma “segunda intenção”, por mais que o meu
olhar de pesquisadora estivesse – e esteja – incorporado ao meu cotidiano e à
minha forma de viver – e trabalhar –, seja em que âmbito for. Foi o próprio
trabalho que, em seu desenrolar, “tomou a iniciativa” de me convidar ao
diálogo. Foram as crianças e seus ditos que foram gerando o movimento para o
estudo cujos resultados aqui relato. De minha parte, apenas respondi ao apelo.
Assim é que, do que eu lia, é que foram surgindo algumas questões:
· Como foi visto o fato inusitado de uma bruxa ser boa?
· De acordo com o que disseram, o que é ser bom para as crianças?
· A meninada mostrou indícios práticos do que seja ser bom?
· Há ideias que apareceram como tendência naquilo que expuseram?
· Há alguma marca feminina no que foi dito?
· E a presença de ideias incomuns, existe?
Tratando-se, como estou a dizer, de um trabalho que nasceu sem
planejamento prévio, o presente estudo não se fez com base em nenhuma
literatura especialmente selecionada, revista e consubstanciada para respaldar
as análises feitas. Nenhum material teórico foi recolhido especificamente para,
com base em suas proposições, categorias e conceitos, servir de parâmetro para
aguçar meu olhar numa ou noutra direção na minha relação com o material de
estudo. Ocorre-me aqui uma historinha que conheço. Pelo que me lembre, era mais
ou menos esta: uma funcionária recebeu uma incumbência e, dando-a por
concluída, foi entregá-la a seu chefe. Este, surpreso pela rapidez com a qual a
tarefa foi cumprida, duvidou da qualidade da atividade recém encerrada e a
questionou: “Já? Quanto tempo levou para concluir a tarefa? Pouco tempo, não?
Ao que ela respondeu, com tranquilidade: “Pouco tempo, não, senhor, gastei a
vida inteira para conseguir terminá-lo. Aparentemente, fica a sensação de tê-lo
aprontado bem rápido, mas não é o caso, nem de longe. Com tudo que fui
aprendendo e estudando pela vida afora é que consegui dar conta da tarefa agora
terminada sem utilizar grande volume de meu tempo neste instante. A minha
capacidade veio sendo feita, aos poucos, ao longo da vida inteira”
É exatamente o meu caso quanto teço considerações sobre o que li. O que
acumulei, fiz e refiz em estudos anteriores, em experiências anteriores, em
momentos os mais diversos, também anteriores, esteve dentro de mim, todo o tempo,
direcionando meu modo de ver, perceber e entender.
Na verdade, minhas anotações adormeceram por aqui, em minha máquina, bem
quietas, em estado de espera, sem que eu lhes desse a devida atenção durante
todo o ano. Vez por outra pensava estar na hora de escrever a respeito. Mas
outras urgências se apresentavam e as expulsavam de meu caminho, até uns poucos
dias atrás. Pois agora, antes de concluir o ano de 2015, como que a limpar
gavetas e me aprumar para o novo ano que está por vir, reencontrei meu “anedotário”,
prontinho, me chamando para ser estudado e tornada pública minha análise a seu
respeito. Sentei e escrevi. E estou muito feliz por ter pensado e escrito o que
pensei e escrevi.
E aqui está um certo jeito de uma certa professora ler o que disseram
certas crianças, muitas, muitas, muitas mesmo, de suas vidas em torno de uma
bruxa e de muitos sentimentos, desejos, expectativas e frustrações. Delas e
minhas. Até porque, a lógica de haver uma relação dialética entre o que se
escreve e o que se pensa e sente não é exclusividade dos meninos e meninas de
quem li histórias. A eles devo, inclusive – e com ênfase –, agradecer pela
chance de me colocarem diante de mim mesma e, estimulada por suas falas, rever
e expor minhas sensações e entendimento sobre tudo que li. Eles
inteiros no que disseram, eu inteira no que digo aqui. De um lado e de outro,
vozes que se entrecruzam, formando-se sujeitos pela força de um diálogo surgido
da inteireza da mútua interveniência.
Agora, é a vez do leitor, o terceiro vértice deste triângulo em relação
de entrega. À leitura, pois, amigos! E às trocas, por favor!
Carmen
1.
A bondade
A
pensar... – A
forma concreta que adquire a bondade da bruxa me parece preocupante e digna de
ser estudada por todos nós, educadores. Ser bom é dar coisas. Vale pensarmos:
ser bom é dar coisas? Ser bom pode ser restringido a uma ação inteiramente
vinculada ao mundo do consumo, ao mundo do que é material? Dar de si – de
sua criatividade, de seu tempo, de seu próprio trabalho – não apareceu em
nenhuma redação. Fora o tempo gasto por algumas bruxas quando faziam seus
milagres, a prática da generosidade se esgotava em dar a alguém alguma coisa
que se comprou em algum estabelecimento comercial. A relação entre quem é bom e
quem recebe o ato bondoso passa necessariamente por um terceiro que faz a
mediação entre eles, vendendo um objeto material que cumprirá o seu papel de
ser expressão de um ato de bondade. E pior: como andam as nossas noções de saúde
e de adequação alimentar? Ser bom é fornecer alimentos carregados de açúcar às
nossas crianças? E desde tão pequenas, formando-lhes hábitos contrários a uma
alimentação saudável? Mais do que preocupante num mundo em que a saúde depende
em grande medida do que é consumido como alimento.
Os
nossos escritores levaram adiante a tarefa de terem diante de si uma bruxa boa
e sobre ela escreverem alguma aventura que desse conta das conjecturas que
fizeram a seu respeito. Em minha leitura, nenhum estranhamento foi notado
quanto à fuga à “ordem natural das coisas”. A julgar pelos escritos e pela
maneira como os li, ninguém estranhou o fato de as bruxas serem boas. Tomei-me
de alegria ao perceber que o insólito pode ter lugar e que o espírito infantil
– daquele numeroso grupo – está preparado para recebê-lo sem questionamentos.
Ao que parece, para aqueles pequenos autores, não há um estrito nem estreito
jeito para se existir. A diversidade parece ter lugar para florescer ou elas,
as crianças, ainda não estão contaminadas por fórmulas restritivas e uniformes
do que é ser bruxa. Pelo que eu, ampliando minha análise, imagino também valer
para meninos e meninas, homens e mulheres, formigas, elefantes ou coelhos. Até
mesmo jibóias – sejam elas vegetais ou animais.
Em
acréscimo, devo dizer ainda que, do ponto de vista de quem vê o mundo em suas
contradições, foi emocionante encontrar uma criança cuja bruxa, que “sempre,
sempre era boa, um dia fez uma maldade”. Bruxas, então, não só podem fugir à
regra e serem boas, como também podem ser boas sem eliminarem por completo a
sua capacidade de colocarem em prática uma certa maldade, vez por outra. Mesmo
que tenha sido por uma voz dissonante, havia ali alguém que não separa o joio
do trigo em grupos diferentes, alguns bons, outros maus, mas os humaniza,
compondo-os com doses de uma coisa e outra.
Mas
vamos às bondades das bruxas...
Nem
sempre o concreto – O
primeiro ponto que quero enfatizar é o de que nem sempre as bondades da
protagonista das histórias são detalhadas. Em percentuais bem similares, o
grupo se divide entre: a) aqueles que não explicitam de que maneira a bruxa
demonstra ser boa; e b) aqueles outros que o fazem, contando alguns detalhes de
suas bondades. Muitas crianças falam apenas do quanto a bruxa é boa; do quanto
é ótima; do quanto é bonita; do tanto que é boazinha; ou do tanto que é
maravilhosa; sem detalhar a forma de ela concretizar suas boas ações. A bruxa
tem a qualidade da bondade e ponto final, já está descrita suficientemente a
sua forma de ser boa, sem se dizer a forma de tal bondade ser posta em vida
vivida.
A
bondade em atos –
Quando descrevem a bondade de suas bruxas, as crianças têm um discurso bastante
homogêneo. A bruxa das nossas crianças mostrava-se milagreira, fazia de tudo,
desde “quando via alguém triste, colocar a felicidade em nós”; até “transformar
notas ruins em notas boas e ficar amiga da criança para sempre”; e ter feito
“esta prova legal pra gente aqui da sala”. A se registrar, no entanto, como
tendência mais que notada, majoritária, persistente, é a de que ser bruxa boa é
ser bruxa que dá presentes. Bruxa boa presenteia – essa é a regra geral. E o
presente mais presente, o mais falado são doces, muitas balas e, em destaque,
chocolates.
2.
As idealizações
O sonho – Uma visão
romantizada da vida perece ser a mais comum entre nossos pequenos autores. É
quase unânime o final das histórias com a expressão “foram felizes para
sempre”. Fosse quem fosse – bruxa e menino, bruxa e bicho, bruxa e outras
bruxas, bruxa e bruxo, bruxa e família, bruxa e vizinhos... – mais cedo ou mais
tarde, por mais que tivessem passado pelas mais diversas peripécias, por mais
que o desenrolar da história houvesse trazido antagonismos entre os
personagens, o final quase sempre era um só – todos os personagens irmanados
numa paz definitiva, na felicidade enfim alcançada, na superação de sofrimentos,
fossem eles quais fossem. Ser feliz para sempre é a ordem geral do enredo, é o
final prospectado e realizado, a qualquer custo. Mesmo “a menina que não gostou da bruxa, no
final fez as pazes e foram felizes para sempre”. Mesmo para “a bruxa que sofreu
com as maldades de suas irmãs bruxas”. Mesmo para “a bruxa que se vingou do
menino que a maltratou muito”.
A pensar... – Ao que parece, para
nossas crianças, ainda tão iniciantes em sua vida, a vida é como um trajeto
que, em algum momento, traz a felicidade ao encontro de cada um. O processo do
viver não é, ao que parece, um misto, bem misturado, de momentos que contêm
amarguras e também alegrias. A imagem que me permito fazer é de que, para elas,
já começa a se ensaiar a vida como uma linha reta onde um milagre, mais cedo ou
mais tarde, acontecerá e a transformará. Por mais inverossímil que possa
parecer, algum milagre chega – mais cedo ou mais tarde – e transforma o curso
da história, trazendo a paz e a união. E um milagre vindo de fora, de alguém
que não seja o próprio sujeito. Não parece haver esforço por parte de quem vive
“a história” para que as situações evoluam e se transformem. Será ainda, para as
meninas, quando feitas mulheres, o príncipe encantado? E para os meninos, o que
será?
Fico a imaginar que talvez esteja aí, tão cedo,
iniciando-se uma ilusão que, mais cedo ou mais tarde, será descoberta em sua
impossibilidade, transformando a esperança em descrença e desilusão. A vida vai sendo encaminhada de uma maneira
tal que ao futuro cabe trazer o que fará cada qual feliz – um bom trabalho, o
sucesso financeiro, a realização profissional, o encontro de um grande amor...
O sonho sendo colocado em substituição à realidade, realidade que é construída,
queiramos ou não mediante nosso próprio esforço e que não pode ser confundida
com um estado definitivo de bem-estar, mas que traz conflitos, dúvidas,
alegrias, num movimento incessante. E movimento este que agrega, reúne,
articula nossas questões individuais e aquilo que nos rodeia, seja em Sergipe,
na esquina de casa ou em Beiruti. Somos a integração de nossa individualidade
com o social que também e indissociavelmente nos compõe. Tom já nos ensinou que “é impossível ser feliz
sozinho”, o que para mim, mais até do que um entendimento romantizado de sua
lição, envolvendo apenas um par de amantes, é tido e havido como a
impossibilidade de cada um ser feliz sem a dimensão da Humanidade inteira dentro
de si. O outro mora dentro de nós, seja ele um jovem terrorista ou suas
vítimas, o menino negro assassinado pela polícia, o político corrupto ou o
herói nacional.
Importantíssimo ressaltar, no entanto, e a me fazer
crer que nada é definitivo e de um jeito só, sempre, é o que pude ler em dois
textos nos quais as crianças afirmavam simplesmente que os personagens “assim
viveram”, sem o “para sempre” a concluir com ar definitivo as suas historinhas.
É verdade que pouquíssimos demonstraram não viver sob o predomínio de uma visão
idealizada, mas, de todo modo, ela se fez presente e nos confirma que, por
menor que seja, há sempre uma dimensão questionadora, revolucionária mesmo,
ainda que em estágio embrionário ou incipiente no conjunto das coisas do mundo
real, como vistas pelos nossos infantes.
3.
Os valores
Na vida, desde que se
nasce, aprende-se. Contrariamente a uma visão puramente inatista ou
ambientalista, o conhecimento se faz pela interação do sujeito com o seu meio. Na perspectiva de que há uma viva
relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, ambos, sujeito e objeto,
têm esta característica em comum: ambos são situados e datados. E, na escola,
desde quando as crianças começam a frequentar as turmas de Educação Infantil,
vão incorporando valores, costumes, maneiras de ser e de se expressar. Importa,
pois, saber o que andam as crianças expondo de si próprias, de tal maneira que
possam ser detectados sistemas de valores que confirmem ou sigam na contramão
de uma postura humanizada e humanizante.
Bem sabemos que o capitalismo é intrinsecamente
impeditivo da universalização da dignidade humana, promovendo a miséria e a
ausência ou precariedade de direitos para a maioria da população e que, em seu
contexto, a escola tende a repetir a lógica perversa da sociedade em que se
insere.
É bem verdade que
existem educadores comprometidos, em maior ou menos grau, com a transformação
dessa sociedade numa sociedade justa e humanizada, mesmo que essa intenção não seja sentida e muito menos
proclamada pela maioria, nem dentro nem fora da escola. Assim, mesmo não sendo a escola, por si só, a
instituição desencadeadora do processo de humanização do Homem, ela pode criar
algumas formas possíveis de intervenção nessa direção.
Cada escola contém elementos contraditórios, forças, mesmo
que pouco nítidas, que se opõem, elementos arcaicos e avançados, desejos
amortecidos, desejos de mudança, desejos de permanência, desejos nem
descobertos... A instituição “pura”, que alguns podem idealizar, com os seus
profissionais harmonicamente seduzidos por uma mesma ideia motriz, a de
humanizar o homem de que falamos, só existe no desejo de alguns que têm tal
intenção, mediante sua ação pedagógica.
Na vida mesma não há espaço para tal pureza de intenções, sem nenhuma
força que a ela se oponha ou, no mínimo, que a ela atribua outras tonalidades,
mais e menos fortes.
A pensar...
Assim entendendo, pelo menos dois valores merecem
ser repensados a partir do que disseram as nossas crianças escritoras:
·
A posição econômica (ser rica) como forma de bem existir (e
até se impor e/ou vingar) – Assim
disse uma criança ao retratar o que falou uma bruxinha para se vingar das
outras bruxas que queriam continuar a ser más: “Moro num prédio lindo, sou rica
e famosa. Fiquem aí, suas chatas, perdedoras...”[3]
·
Um possível preconceito contra a velhice – “Uma bruxinha era boa, mas foi
envelhecendo e aí foi ficando má”. De
minha parte, não consegui deixar de ver um sorriso em minha face recebendo esse
veredicto infantil. Ou seja: além das
dores (físicas) que chegam junto com o envelhecimento, ainda há a possibilidade
de nossa porção mazinha se agigantar dentro de nós? Seria trágico se não fosse
cômico...[4]
4.
A religião
A julgar pelo que pude
ler e constatar, é surpreendente a ausência quase que generalizada de elementos
religiosos nas falas das crianças. Religiosos, melhor dito, em sentido estrito,
pois que, pode ser que exista a presença de elementos seculares mas tratados
religiosamente, sem a devida compreensão, mas seguidos “com fé”. Mas ritos,
crenças, dogmas, que pudessem compor o ideário de alguma Igreja, o seu conjunto
de pensares e práticas, não foram utilizados pelas crianças em suas
narrativas. Apenas uma criança falou
diretamente de Religião; e uma outra me fez lembrar de uma atitude bastante
comum no catolicismo, mesmo não tendo falado diretamente dele.
A pensar... – Mesmo que de maneira extremamente
reduzida, tanto o conteúdo que indica a presença do catolicismo quanto o que da
religião evangélica – presentes no que as crianças disseram – sob o meu ponto de
vista, nos deve levar a refletir:
·
Uma criança criou a sua bruxa de um jeito em que ela ficou
rica para poder dar dinheiro aos pobres. Ou seja, bem fiel à lógica do
catolicismo, a bruxa passaria a exercer a caridade, distribuindo parte de sua
própria riqueza. Pobres continuariam pobres e ela seria aquinhoada com o
bem-estar que “a riqueza” traz e poderia ser boa, generosa, fazendo o bem para
quem escolhesse. A desigualdade permanece, apenas com uma pessoa eleita para
distribuir o que lhe aprouvesse para os demais.
·
Houve também a presença de uma bruxinha evangélica. Como
prova de seu arrependimento pelas maldades feitas até ali, ela “leria a bíblia
todos os dias e, também diariamente, passou a orar na igreja”. Como orar sempre
aparece como fala típica dos evangélicos, diferentemente dos católicos que
sempre preferem a palavra rezar, fiquei a supor que essa criança vive num
ambiente de evangélicos, no qual a leitura da bíblia é por demais valorizada.
5.
Algo a mais...
O caráter
surpreendente das crianças pôde ser vivido por mim com intensidade, entusiasmo
e gratidão. Uma alegria tomar contato com o que expunham de si e de suas vidas,
desde aqueles que escreviam incansavelmente, tomando todos os espaços do papel
como que a demonstrar que tinham muito a dizer; até aquelas que pareciam estar
ocas de palavras, quase deixando o papel todo em branco, mas que, de repente surpreendiam
chamando, por exemplo, aranha de aracnídeo; ou umas outras tantas que, sem
escrever nenhuma palavra com sentido já conhecido pelo leitor, apenas rabiscos
de todo o tipo, insistiam em nos fazer acreditar em que entendiam, que
percebiam, que existiam e queriam ser ouvidas por meio de sua inexpressiva
expressão ou (como julgo mais fiel ao fato), de sua mais que expressiva
expressão de uma sua ainda impossibilidade de se expressar – fosse para falar
de bruxas, de cadernos, do sol, da chuva ou de sua cidadania ainda tão
precariamente em construção, e não por sua própria responsabilidade.
Talvez a mais
emocionante e doída fala que pude ler foi a de uma criança que esperava que “a
bruxa fizesse a mágica dela aprender a ler”. Já uma das mais animadoras foi a
de uma menina que simplesmente escreveu EU NÃO SEI, demonstrando coragem,
possibilidade de se expor sem riscos, sinceridade no trato com um problema que
se apresentava ali para ela resolver com seus parcos recursos – o de escrever
uma história. Não se fez de rogada, não saiu pela tangente, não dissimulou,
apenas disse de seu momento naquele instante. Para mim, deu-me a impressão de
ser uma pessoinha que começa a saber de si e ensaia um trato com as questões da
vida sem grandes temores. Aquela atitude sã de quem mira o outro de uma mesma
altura. Olhares parelhos. Dando início ao enfrentamento da situação, anunciando
tão simplesmente o seu julgamento, pareceu-me demonstrar uma forma de quem começa
a trilhar um bom caminho para viver a vida onde muitas vezes, nós, mesmo já
adultos, precisamos de um tempo para saber qual o próximo passo a dar para seguir
em frente de um modo menos sombrio, mais humano, mais justo e feliz.
REFERÊNCIAS
(durante toda a vida, as mais fiéis)
(durante toda a vida, as mais fiéis)
ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 1a. reimpressão. 2003.
BAKHTIN,
M.M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992b.
CARDOSO, Miriam Limoeiro. A periodização e a
Ciência da História. 1977. mimeografado.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática. São Paulo, 1994.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler
(34ª edição). São Paulo: Cortez Editora, 1997.
FOUCAULT, Michel. Microfísica
do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1979.
FRIGOTTO. Gaudêncio. A
produtividade da escola improdutiva. São Paulo. Cortez
Editora e Editora
Autores Associados.1986.Civilização
Brasileira, 1981.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a
organização da cultura.Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1968.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de
Janeiro. Editora Paz e terra Ltda., 1985.
LOZZA, Carmen. Escritos sobre jornal e
educação.olhares de longe e de perto. São Paulo: Global Editora, 2009.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura
(3ª edição). São Paulo: Cortez Editora, 1996.
PESSANHA, José Américo. Filosofia e Modernidade:
racionalidade, Imaginação e ética. Cadernos ANPED. Porto Alegre. 1993 (4):
7-36, 1993
[1] Pedagoga, mestra em Educação,
professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (Faculdade de
Educação) e da Rede de Ensino do Estado do Rio de Janeiro. Acadêmica e
literariamente também conhecida como Carmen Lozza. E-mail: clozza@uol.com.br
[2] Termo típico dos tempos do
escolanovismo, que significa a reunião de pequenos e objetivos registros sobre
a vida escolar dos alunos. Aqui, no nosso caso, o utilizo como o conjunto das
expressões utilizadas pelas crianças em seus escritos.
[3] Fazer Ciência não é se descolar do
humor. Tal fala me pareceu a própria Senhora dos Absurdos, do ator Paulo Gustavo.
[4] Outra historinha que me fez rir foi a de uma criança que falou
de uma bruxa que recebeu o beijo de um bruxo muito feio. “O bruxo feio veio a beijou a bruxinha. Ela
viveu de novo e foram felizes para sempre”. Ou seja, o “mercado” está tão ruim
para as mulheres que até um bruxo – e feio – a acorda para a felicidade.
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