domingo, 5 de junho de 2016

FIM DE UM CICLO E UMA MEA CULPA
(reflexões de uma tarde fria)
Carmen Lucia Pessanha
A DIALÉTICA DA VIDA
É quase como uma história da Carochinha. Dá até para começar de jeito idêntico. E eu começo, atendendo à inspiração que determina que assim seja. Pois, vou lá...
 Era uma vez uma professora que trabalhava numa perspectiva de sempre tentar perceber os vários ângulos de uma mesma questão. As coisas, pessoas, circunstâncias, para ela, sempre podiam ser percebidas de várias perspectivas, muito mais até do que pelos dois costumeiros lados como costuma-se dizer por aí... Se “isto” era marcantemente propiciador de preconceitos, também poderia deixar margem para uma beirada de pensamento crítico. Se “aquilo” era sempre cinza amarguento, nem que fosse num diazinho de nada deixava-se iluminar por alguns segundos, colocando para correr o seu acinzentado habitual... Se “Fulano” eram mau que nem um picapau, podia-se ter certeza de que ou era um exímio cozinheiro ou um filho extremado com a mãe idosa.... Era assim a coisa: bastava alguma situação se apresentar de uma maneira, que ela, já quase por vício – e esse era o problema – tratava de lhe dar a volta e examiná-la de outro ponto de vista.
Deixando-se trair por essas suas lentes dialéticas de perceber as coisas do mundo, a professora, hoje vê, até mesmo deixou-levar por um movimento de “caçar” contrários, ampliando determinadas dimensões de uma situação, quando se deparava com o seu oposto. Assim: a escola está caótica e autoritariamente posta em funcionamento? A direção é conservadora? Os professores não têm espaço para se reunir? Os alunos estão sem voz? O grêmio está impedido de se instalar? Ah, mas existe umazinha professora de História que faz um bom trabalho e que pode reverter este clima antidemocrático e rígido.  Uma verdadeira “caçada ao tesouro da contradição” que haveria de ser encontrada.
A postura perquiridora da mestra se exercitava a tal ponto que, antes mesmo de se dispor a investigar mais a fundo os vários ângulos de uma dada situação – a tendência posta em prática e que se evidenciava ali, na frente de seu nariz (e entendimento) –, por fidelidade ao “método”, a professora saía em busca de algum aspecto que contrariasse a tendência geral.  Era como que (também só hoje ela vê), pelo temor de se prender à aparência dos fatos (“o marido é mau”, “a escola é determinada por suas circunstâncias”, “o assassino é frio”, “a mulher é submissa”, etc.), obrigatoriamente, tivesse que encontrar um outro lado que reduzisse o caráter absoluto da aparência inicial e encobridora do que lhe vai por dentro.

A QUESTÃO DA IMPRENSA
Por filiação a tal perspectiva epistemológica, lá pela década de 1990, ao estudar que se vinha dando cada vez mais intensamente a presença de jornais nas escolas, a professora identificou o seguinte:
a)    naquele momento da educação brasileira, havia uma tendência bastante marcante de que a escola considerasse o cotidiano das crianças para, a partir dele, propor e desenvolver o conteúdo programático, abandonando a maneira tradicional de “passar o conteúdo” sem considerar o contexto do aluno;
b)    cada vez mais havia programas bancados pelas empresas jornalísticas que incentivavam e financiavam a presença de jornais nas escolas, preocupadas em garantir seus negócios no futuro, criando desde cedo, potenciais leitores de jornais;
c)     de maneira equivocada e perniciosa a uma educação crítica e de qualidade, muitas autoridades educacionais anunciavam a presença de jornais nas escolas como SINÔNIMO de o cotidiano estar na escola.
O mal estava servido. Era gravíssimo, de efeitos desastosos em termos de cidadania, que os jornais chegassem às escolas não como uma determinada interpretação do cotidiano, mas como se ele próprio já fosse o cotidiano. Era o anúncio de um grande desastre pedagógico e político. Seria sacramentar a visão da imprensa como verdadeira. Seria abrir mão da necessária, imperiosa e indispensável leitura crítica, a ser realizada por cada leitor de jornal. Caso de reversão imediata de tal possibilidade!
A influência maléfica da imprensa já era assunto há muito insistentemente estudado pela professora. Mas, o seu vício de olhar os outros ângulos das questões, fez com que também valorizasse alguns aspectos positivos da presença de jornais nas escolas, debatendo com os professores, seus pares, as contradições inerentes ao veículo. Assim é que, ao lado da percepção do tanto que os jornais generalizam, simplificam opinam, clara ou subliminarmente, tratam fatos históricos como se fossem naturais, escondem, priorizam, selecionam determinadas fontes – prioritariamente representantes da banda tradicional, e não outras – , reduzem, diluem a dimensão da política no cotidiano de cada qual, dentre tantas outros de seus incontáveis defeitos, a professora também valorizava o fato de o jornal trazer de bom para as salas de aula: o aprendizado informal da língua, a chegada de novos assuntos para intensificar o debate em sala, uma visão geral do que anda pelo mundo, por mais que fosse apenas um recorte da mesma, a abertura a autores interessantes (Verissimo, Zuenir, Rosiska, Elio Gaspari, por exemplo), etc., etc., etc.

E QUANDO SE ACIRRA A LUTA?
Hoje, a conjuntura política do Brasil mudou, desde que as últimas eleições presidenciais racharam o país praticamente ao meio, trazendo esperanças à banda conservadora, de voltar ao poder. O prazer de sentir cheiro de uma quase vitória animou os detentores do poder econômico e as forças conservadoras se uniram em total sintonia, tendo a grande imprensa como porta-voz de seu ânimo. Os jornalões deixaram de lado a cerimônia e passaram a construir uma realidade totalmente enviesada, toda ela pensada para derrubar o governo da presidente Dilma. Agora, eles não apenas se deixam encharcar pelo seu costumeiro viés ideológico, mas vão muito além. A mudança é visível e profunda. A dimensão mais imediata do jornal como negócio passou a ser subjugada pelo interesse ideológico de abrir a sonhada chance de voltarem a governarem sozinhos o país. Ao que parece, ficou bastante secundarizado o seu cuidado em ter um mínimo de isenção que lhe garantisse credibilidade junto ao público.
Nessa conjuntura, a professora revê suas considerações. Não que não existam contradições. Não que aqui ou ali os jornais não tragam benefícios a seus leitores, apresentando-lhes algo que valha a pena ler. Mas, o caráter pernicioso e o teor inverídico das notícias alcançaram tamanha dianteira, a submissão do seu caráter noticioso e informativo está de tal maneira afetada pela necessidade de formar uma opinião descolada da realidade e a favor de interesses espúrios que não há como se ler mais os grandes jornais. Mais do que nunca, cada um tem que buscar meios alternativos para contar com informações confiáveis.
Se antes cada leitor era responsável por, diante de uma notícia de jornal, ele próprio ser o autor da reinterpretação do que o jornal lhe apresentava como acontecimento, agora a sua autoria se expande. Ele passa a ser autor de um passo anterior: o de ir em busca de a qual veículo consultar para ler. O prato já não vem mais servido. Ele próprio, leitor, providenciará o cardápio a ser consumido, debatido, avaliado, complementado, até mesmo, superado.
Que meu amado Verissimo me perdoe. Mas, o que tenho feito e proposto é que a leitura de suas maravilhosas crônicas seja buscada por outro intermédio. Sem precisar passar pelo que a está envolvendo nas diversas páginas do noticioso que, imerecidamente, as contêm.
 Contraditoriamente, para o bem e para o mau, o tempo de “infância intelectual” virou passado e a professora soltou-se das amarras positivistas que tentavam conter a dialética com que via o mundo. Ela, é óbvio, sou eu, que, como boa leitora de histórias infantis, cá está rearrumando lobos, princesas, dragões e florestas, sabendo que tudo isso, e mais o príncipe, não cessam de mudar e de ganhar nuances enquanto a História se desenrola...

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