FIM DE UM CICLO E UMA MEA CULPA
(reflexões
de uma tarde fria)
Carmen Lucia Pessanha
A
DIALÉTICA DA VIDA
É quase como
uma história da Carochinha. Dá até para começar de jeito idêntico. E eu começo,
atendendo à inspiração que determina que assim seja. Pois, vou lá...
Era uma vez uma professora que trabalhava numa
perspectiva de sempre tentar perceber os vários ângulos de uma mesma questão. As
coisas, pessoas, circunstâncias, para ela, sempre podiam ser percebidas de
várias perspectivas, muito mais até do que pelos dois costumeiros lados como costuma-se
dizer por aí... Se “isto” era marcantemente propiciador de preconceitos, também
poderia deixar margem para uma beirada de pensamento crítico. Se “aquilo” era
sempre cinza amarguento, nem que fosse num diazinho de nada deixava-se iluminar
por alguns segundos, colocando para correr o seu acinzentado habitual... Se “Fulano”
eram mau que nem um picapau, podia-se ter certeza de que ou era um exímio
cozinheiro ou um filho extremado com a mãe idosa.... Era assim a coisa: bastava
alguma situação se apresentar de uma maneira, que ela, já quase por vício – e esse
era o problema – tratava de lhe dar a volta e examiná-la de outro ponto de
vista.
Deixando-se
trair por essas suas lentes dialéticas de perceber as coisas do mundo, a
professora, hoje vê, até mesmo deixou-levar por um movimento de “caçar”
contrários, ampliando determinadas dimensões de uma situação, quando se deparava
com o seu oposto. Assim: a escola está caótica e autoritariamente posta em
funcionamento? A direção é conservadora? Os professores não têm espaço para se
reunir? Os alunos estão sem voz? O grêmio está impedido de se instalar? Ah, mas
existe umazinha professora de História que faz um bom trabalho e que pode
reverter este clima antidemocrático e rígido. Uma verdadeira “caçada ao tesouro da
contradição” que haveria de ser encontrada.
A postura
perquiridora da mestra se exercitava a tal ponto que, antes mesmo de se dispor
a investigar mais a fundo os vários ângulos de uma dada situação – a tendência
posta em prática e que se evidenciava ali, na frente de seu nariz (e
entendimento) –, por fidelidade ao “método”, a professora saía em busca de
algum aspecto que contrariasse a tendência geral. Era como que (também só hoje ela vê), pelo
temor de se prender à aparência dos fatos (“o marido é mau”, “a escola é
determinada por suas circunstâncias”, “o assassino é frio”, “a mulher é
submissa”, etc.), obrigatoriamente, tivesse que encontrar um outro lado que
reduzisse o caráter absoluto da aparência inicial e encobridora do que lhe vai
por dentro.
A QUESTÃO
DA IMPRENSA
Por filiação
a tal perspectiva epistemológica, lá pela década de 1990, ao estudar que se
vinha dando cada vez mais intensamente a presença de jornais nas escolas, a
professora identificou o seguinte:
a) naquele momento da educação brasileira,
havia uma tendência bastante marcante de que a escola considerasse o cotidiano
das crianças para, a partir dele, propor e desenvolver o conteúdo programático,
abandonando a maneira tradicional de “passar o conteúdo” sem considerar o
contexto do aluno;
b) cada vez mais havia programas bancados
pelas empresas jornalísticas que incentivavam e financiavam a presença de jornais
nas escolas, preocupadas em garantir seus negócios no futuro, criando desde
cedo, potenciais leitores de jornais;
c) de maneira equivocada e perniciosa a
uma educação crítica e de qualidade, muitas autoridades educacionais anunciavam
a presença de jornais nas escolas como SINÔNIMO
de o cotidiano estar na escola.
O mal estava
servido. Era gravíssimo, de efeitos desastosos em termos de cidadania, que os
jornais chegassem às escolas não como uma determinada interpretação do
cotidiano, mas como se ele próprio já fosse o cotidiano. Era o anúncio de um
grande desastre pedagógico e político. Seria sacramentar a visão da imprensa
como verdadeira. Seria abrir mão da necessária, imperiosa e indispensável
leitura crítica, a ser realizada por cada leitor de jornal. Caso de reversão
imediata de tal possibilidade!
A influência
maléfica da imprensa já era assunto há muito insistentemente estudado pela
professora. Mas, o seu vício de olhar os outros ângulos das questões, fez com
que também valorizasse alguns aspectos positivos da presença de jornais nas
escolas, debatendo com os professores, seus pares, as contradições inerentes ao
veículo. Assim é que, ao lado da percepção do tanto que os jornais generalizam,
simplificam opinam, clara ou subliminarmente, tratam fatos históricos como se
fossem naturais, escondem, priorizam, selecionam determinadas fontes – prioritariamente
representantes da banda tradicional, e não outras – , reduzem, diluem a
dimensão da política no cotidiano de cada qual, dentre tantas outros de seus incontáveis
defeitos, a professora também valorizava o fato de o jornal trazer de bom para
as salas de aula: o aprendizado informal da língua, a chegada de novos assuntos
para intensificar o debate em sala, uma visão geral do que anda pelo mundo, por
mais que fosse apenas um recorte da mesma, a abertura a autores interessantes
(Verissimo, Zuenir, Rosiska, Elio Gaspari, por exemplo), etc., etc., etc.
E QUANDO
SE ACIRRA A LUTA?
Hoje, a
conjuntura política do Brasil mudou, desde que as últimas eleições
presidenciais racharam o país praticamente ao meio, trazendo esperanças à banda
conservadora, de voltar ao poder. O prazer de sentir cheiro de uma quase
vitória animou os detentores do poder econômico e as forças conservadoras se
uniram em total sintonia, tendo a grande imprensa como porta-voz de seu ânimo. Os
jornalões deixaram de lado a cerimônia e passaram a construir uma realidade totalmente
enviesada, toda ela pensada para derrubar o governo da presidente Dilma. Agora,
eles não apenas se deixam encharcar pelo seu costumeiro viés ideológico, mas
vão muito além. A mudança é visível e profunda. A dimensão mais imediata do
jornal como negócio passou a ser subjugada pelo interesse ideológico de abrir a
sonhada chance de voltarem a governarem sozinhos o país. Ao que parece, ficou
bastante secundarizado o seu cuidado em ter um mínimo de isenção que lhe
garantisse credibilidade junto ao público.
Nessa
conjuntura, a professora revê suas considerações. Não que não existam
contradições. Não que aqui ou ali os jornais não tragam benefícios a seus
leitores, apresentando-lhes algo que valha a pena ler. Mas, o caráter
pernicioso e o teor inverídico das notícias alcançaram tamanha dianteira, a submissão
do seu caráter noticioso e informativo está de tal maneira afetada pela
necessidade de formar uma opinião descolada da realidade e a favor de
interesses espúrios que não há como se ler mais os grandes jornais. Mais do que
nunca, cada um tem que buscar meios alternativos para contar com informações confiáveis.
Se antes
cada leitor era responsável por, diante de uma notícia de jornal, ele próprio
ser o autor da reinterpretação do que o jornal lhe apresentava como
acontecimento, agora a sua autoria se expande. Ele passa a ser autor de um
passo anterior: o de ir em busca de a qual veículo consultar para ler. O prato
já não vem mais servido. Ele próprio, leitor, providenciará o cardápio a ser
consumido, debatido, avaliado, complementado, até mesmo, superado.
Que meu
amado Verissimo me perdoe. Mas, o que tenho feito e proposto é que a leitura de
suas maravilhosas crônicas seja buscada por outro intermédio. Sem precisar
passar pelo que a está envolvendo nas diversas páginas do noticioso que, imerecidamente,
as contêm.
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