domingo, 19 de junho de 2016





PONDO SOMBRAS PRA QUARAR

Quanto mais e vivo e estudo mais me convenço de que posso comparar com o conceito de 'sombra' os preconceitos que temos em nós. E sombras que nem necessitam de sol para se fazerem visíveis. Não hesito mesmo em dizer que o que somos extravasa nossas fronteiras internas e marca o nosso viver, expressando-se em tudo aquilo que vai de nós ao encontro do mundo e de seus circunstantes. E que, com os preconceitos, esse transbordar também se dá de maneira nítida. É bem verdade que nem sempre é inteiramente nítido para nós mesmos. Se o fosse, quem sabe, até, tentaríamos disfarçar aquilo que poderia vir a nos "deixar mal" perante o olhar exterior. Mas, seja na forma do que a Psicologia chama de "ato falho" ou mesmo na imaginada racionalidade com que julgamos poder cercar nossas ações, nosso ser – e, dentro dele, nossos sentimentos, valores e preconceitos (que é o ponto em que estou centrada nestas minhas ponderações) – “estamos” no que fazemos, no que dizemos, no que escrevemos. É isto mesmo: corpo e sombra, imagem refletida.
Essa introdução vem a propósito de uma postagem com a qual me defrontei ontem. Outras até, de caráter similar, já bateram à minha porta virtual de relação com o mundo. Mas foi a de ontem que tomou ares de assunto sério e me pôs a tecer conjecturas a respeito. 
Observemos a imagem sobre a qual falo, reproduzida aqui, lá em cima, para podermos melhor dialogar a respeito. Vejamos: nela, uma linda menina, portadora da síndrome de Down, bem cuidada e sorridente, é o assunto. Trata-se de uma campanha, onde seu autor, um adulto, falando como se fora a menina, anuncia seu nome, dizendo estar fazendo aniversário e, pior!, desafiando quem se vir diante de sua foto a parabenizá-la. 
A imagem e o texto que a acompanha provocaram em mim um estranhamento e me trouxeram algumas inquietações, tomada que fui por um forte desagrado diante do que vi: 
 1) por que aquilo? Qual o seu sentido? Criado com qual intenção?
   2) quem e por qual motivo colocaria a foto de uma criança – filha, sobrinha, aluna – no Facebook, falando em nome dela e  avisando que é seu aniversário? 
   3) por que e para que foi lançado e desafio induzindo as pessoas a parabenizarem a aniversariante?
     4)  por que a dúvida quanto ao fato de que as pessoas a parabenizariam ou não?
     5)O que tudo isso traz subjacente e que pode ser mais bem vasculhado?
   
   O que parecia certo era tratar-se de uma campanha de apoio aos portadores da Síndrome de Down, cuidando seus autores para que estes venham a ser aceitos socialmente. Certo também que seus autores partem do pressuposto de que há um preconceito contra os portadores da Síndrome e que uma campanha assim pode vir a combatê-lo.
     A expectativa de quem produziu a peça publicitária parecia ser a de que um certo incômodo viesse a ser por ela provocado e que talvez, em função disso,  surgisse um sentimento de piedade por parte de quem viesse a tomar contato com a peça, o que levaria a que, fosse quem fosse, por pena ou solidariedade, parabenizasse a linda menina. E, quem sabe?, isso seria um passo importante em direção ao alcance do objetivo da campanha.  Bem tratada a criança pelo leitor, sendo ela merecedora de receber muitos parabéns em sua data comemorativa anual, a campanha teria cumprido seu papel.  O mundo seria melhor, pois que cada qual teria cumprido o seu dever. Afinal de contas, todos poderiam comemorar – a menina, seus parentes, pais e amigos, em torno de sua festinha de aniversário – e o próprio leitor, que tornou-se autor de uma bela atitude, na medida em que tratou uma menina “diferente” como se fora um filho seu, sem nenhum preconceito.
     Bela intenção de quem criou o material. Não duvido disso. Mas, e o que mais? Ou, o que menos?
     Convido quem lê estas minhas observações a me acompanhar no seguinte trajeto de perquirições e buscas:
     Por que não haveria alguém das relações de Ana Lívia para parabenizá-la?
     O que pretendia quem expôs sua foto "pedindo" um gesto de caridade em relação a ela? Aliás, essa é uma das táticas recorrentes deste nosso mundo virtual – a de desafiar o leitor a ter alguma atitude, duvidando de que ele possa agir de uma determinada maneira. Pensam seus autores que, com isso, a pessoa se verá quase que na obrigação de cumprir o que se espera dele.


·      Se é aniversário da menina, ela deve ter pessoas que lhe querem bem e que lhe darão os parabéns. Ali, pertinho dela. Ela não aparenta ser uma criança mal cuidada, que vive só e em circunstâncias de abandono. Pelo contrário, é bonita e bem cuidada. Sua carinha é doce e demonstra que, se sabe emitir uma sensação tão meiga, deve receber meiguices que lhe ensinaram e lhe ensinam a ter esse jeitinho tão cativante. Ana Lívia parece ser uma criança feliz.   
     Por que deveria a menina receber parabéns de estranhos, de pessoas que nem conhece, com quem não tem o menor vínculo afetivo? Quase asseguro para ela o gesto de quem aceitasse o desafio posto não teria a menor graça.
·      Fico pensando com meus botões que quem está pedindo esta esmola para a menina pode até estar bem intencionado, mas está redondamente enganado. Não tem sentido ser pedido para pessoas estranhas darem os parabéns a Ana Lívia. Para ela, isso é nada ou quase nada. No mínimo, estranho. O seu irmão, seu coleguinha ou vizinho (não portadores da síndrome de Down) não recebem este tipo de afago artificial. Por que ela precisa desse estímulo para que a abracem e cumprimentem? Ela é diferente ou, dito mais claramente, é pior do que os demais?
·       Será que quem pensa assim e tomou tal iniciativa não deve estar imaginando que algumas pessoinhas como a menina são imerecedoras de carinho e precisam que alguém suplique em seu nome por alguma atenção?
      Aqui, retomo as ideias que expus inicialmente. O preconceito, a meu ver, está em quem criou este pedido de parabéns. Sem que o adulto que criou a campanha percebesse, o preconceito saiu de si e contaminou sua iniciativa. Quem precisa de ajuda, para mim, são essas pessoas que vêm a menininha como carente de carinho alheio. E que expõem a sua foto para uma campanha que lhe diminui como ser humano. Essas pessoas precisam aprender que não é assim. João é amado como ele é e recebe parabéns em seu aniversário. Lucia é amada como ela é e recebe parabéns em seu aniversário. Marina também. Pedro, Joana e as crianças quase todas. Só ficam de fora aquelas que estão sozinhas no mundo. Que não é o caso da nossa menina, ao que parece.
     Quando uma pessoa duvida que alguém possa vir a dar os parabéns, pelo fato da criança ter síndrome de Down, quem está sob suspeita quanto à maneira como vê a criança e as demais pessoinhas que têm essa síndrome, é o próprio sujeito que fez o desafio, totalmente preconceituoso e inadequado.
     Discordo, portanto, frontalmente desta campanha e peço que reconsiderem esta maldade, ao que parece, tão irrefletida, mas que pode trazer sequelas emocionais para quem nela está envolvido. E que em nada ajuda a que cada um de nós se veja inserido no mundo da diversidade e do respeito às diferenças; no mundo em que cada qual, todos, devemos buscar em nosso íntimo toda a carga que veio nos tornando o que somos. 
     Que nos reeduquemos para combater o bom combate de respeitarmos, com gestos vigorosos, nossas porções menores, acumpliciadas com toda a carga de preconceitos que vigem contra todo e qualquer elemento que fuja ao que uma determinada elite define como bom, normal, eficiente, capaz e exitoso!


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