PONDO
SOMBRAS PRA QUARAR
Quanto mais e vivo e estudo mais me
convenço de que posso comparar com o conceito de 'sombra' os preconceitos que
temos em nós. E sombras que nem necessitam de sol para se fazerem visíveis. Não
hesito mesmo em dizer que o que somos extravasa nossas fronteiras internas e
marca o nosso viver, expressando-se em tudo aquilo que vai de nós ao encontro
do mundo e de seus circunstantes. E que, com os preconceitos, esse transbordar
também se dá de maneira nítida. É bem verdade que nem sempre é inteiramente
nítido para nós mesmos. Se o fosse, quem sabe, até, tentaríamos disfarçar
aquilo que poderia vir a nos "deixar mal" perante o olhar exterior.
Mas, seja na forma do que a Psicologia chama de "ato falho" ou mesmo
na imaginada racionalidade com que julgamos poder cercar nossas ações, nosso
ser – e, dentro dele, nossos sentimentos, valores e preconceitos (que é o ponto
em que estou centrada nestas minhas ponderações) – “estamos” no que fazemos, no
que dizemos, no que escrevemos. É isto mesmo: corpo e sombra, imagem refletida.
Essa introdução vem a propósito de uma
postagem com a qual me defrontei ontem. Outras até, de caráter similar, já
bateram à minha porta virtual de relação com o mundo. Mas foi a de ontem que
tomou ares de assunto sério e me pôs a tecer conjecturas a respeito.
Observemos a imagem sobre a qual falo,
reproduzida aqui, lá em cima, para podermos melhor dialogar a respeito.
Vejamos: nela, uma linda menina, portadora da síndrome de Down, bem cuidada e
sorridente, é o assunto. Trata-se de uma campanha, onde seu autor, um adulto,
falando como se fora a menina, anuncia seu nome, dizendo estar fazendo
aniversário e, pior!, desafiando quem se vir diante de sua foto a
parabenizá-la.
A imagem e o texto que a acompanha provocaram em mim um estranhamento e me trouxeram algumas inquietações, tomada que fui por um forte desagrado diante do que vi:
1) por que aquilo? Qual o seu sentido? Criado com qual intenção?
2) quem e por qual motivo colocaria a
foto de uma criança – filha, sobrinha, aluna – no Facebook, falando em nome
dela e avisando que é seu aniversário?
3) por que e para que foi lançado e desafio
induzindo as pessoas a parabenizarem a aniversariante?
4) por que a dúvida quanto ao fato de que as
pessoas a parabenizariam ou não?
5)O que tudo isso traz subjacente e que pode
ser mais bem vasculhado?
O que parecia certo era tratar-se de uma campanha de apoio aos portadores da Síndrome de Down, cuidando seus autores para que estes venham a ser aceitos socialmente. Certo também que seus autores partem do pressuposto de que há um preconceito contra os portadores da Síndrome e que uma campanha assim pode vir a combatê-lo.
A expectativa de quem produziu a
peça publicitária parecia ser a de que um certo incômodo viesse a ser por ela
provocado e que talvez, em função disso, surgisse um sentimento de
piedade por parte de quem viesse a tomar contato com a peça, o que levaria a
que, fosse quem fosse, por pena ou solidariedade, parabenizasse a linda menina.
E, quem sabe?, isso seria um passo importante em direção ao alcance do objetivo
da campanha. Bem tratada a criança pelo leitor, sendo ela merecedora
de receber muitos parabéns em sua data comemorativa anual, a campanha teria
cumprido seu papel. O mundo seria melhor, pois que cada qual teria
cumprido o seu dever. Afinal de contas, todos poderiam comemorar – a menina,
seus parentes, pais e amigos, em torno de sua festinha de aniversário – e o
próprio leitor, que tornou-se autor de uma bela atitude, na medida em que
tratou uma menina “diferente” como se fora um filho seu, sem nenhum
preconceito.
Bela intenção de quem criou o material. Não
duvido disso. Mas, e o que mais? Ou, o que menos?
Convido quem lê estas minhas observações a
me acompanhar no seguinte trajeto de perquirições e buscas:
Por que não haveria alguém das relações de Ana Lívia para parabenizá-la?
O que pretendia quem expôs sua foto "pedindo" um gesto de caridade em relação a ela? Aliás,
essa é uma das táticas recorrentes deste nosso mundo virtual – a de desafiar o
leitor a ter alguma atitude, duvidando de que ele possa agir de uma determinada
maneira. Pensam seus autores que, com isso, a pessoa se verá quase que na
obrigação de cumprir o que se espera dele.
· Se é
aniversário da menina, ela deve ter pessoas que lhe querem bem e que lhe darão
os parabéns. Ali, pertinho dela. Ela não aparenta ser uma criança mal cuidada,
que vive só e em circunstâncias de abandono. Pelo contrário, é bonita e bem
cuidada. Sua carinha é doce e demonstra que, se sabe emitir uma sensação tão
meiga, deve receber meiguices que lhe ensinaram e lhe ensinam a ter esse
jeitinho tão cativante. Ana Lívia parece ser uma criança feliz.
Por que deveria a menina receber
parabéns de estranhos, de pessoas que nem conhece, com quem não tem o menor vínculo
afetivo? Quase asseguro para ela o gesto de quem aceitasse o desafio posto
não teria a menor graça.
· Fico
pensando com meus botões que quem está pedindo esta esmola para a menina pode
até estar bem intencionado, mas está redondamente enganado. Não tem sentido ser
pedido para pessoas estranhas darem os parabéns a Ana Lívia. Para ela, isso é
nada ou quase nada. No mínimo, estranho. O seu irmão, seu coleguinha ou vizinho
(não portadores da síndrome de Down) não recebem este tipo de afago artificial.
Por que ela precisa desse estímulo para que a abracem e cumprimentem? Ela é
diferente ou, dito mais claramente, é pior do que os demais?
· Será que
quem pensa assim e tomou tal iniciativa não deve estar imaginando que algumas
pessoinhas como a menina são imerecedoras de carinho e precisam que alguém
suplique em seu nome por alguma atenção?
Aqui,
retomo as ideias que expus inicialmente. O preconceito, a meu ver, está em quem
criou este pedido de parabéns. Sem que o adulto que criou a campanha percebesse,
o preconceito saiu de si e contaminou sua iniciativa. Quem precisa de ajuda,
para mim, são essas pessoas que vêm a menininha como carente de carinho alheio.
E que expõem a sua foto para uma campanha que lhe diminui como ser humano.
Essas pessoas precisam aprender que não é assim. João é amado como ele é e
recebe parabéns em seu aniversário. Lucia é amada como ela é e recebe parabéns
em seu aniversário. Marina também. Pedro, Joana e as crianças quase todas. Só
ficam de fora aquelas que estão sozinhas no mundo. Que não é o caso da nossa
menina, ao que parece.
Quando
uma pessoa duvida que alguém possa vir a dar os parabéns, pelo fato da criança
ter síndrome de Down, quem está sob suspeita quanto à maneira como vê a criança
e as demais pessoinhas que têm essa síndrome, é o próprio sujeito que fez o
desafio, totalmente preconceituoso e inadequado.
Discordo, portanto, frontalmente desta
campanha e peço que reconsiderem esta maldade, ao que parece, tão irrefletida,
mas que pode trazer sequelas emocionais para quem nela está envolvido. E que em
nada ajuda a que cada um de nós se veja inserido no mundo da diversidade e do
respeito às diferenças; no mundo em que cada qual, todos, devemos buscar em
nosso íntimo toda a carga que veio nos tornando o que somos.
Que nos reeduquemos para combater o bom
combate de respeitarmos, com gestos vigorosos, nossas porções menores,
acumpliciadas com toda a carga de preconceitos que vigem contra todo e qualquer
elemento que fuja ao que uma determinada elite define como bom, normal,
eficiente, capaz e exitoso!
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