13/12/2013
(NÓS, EDUCADORES,
NOSSA SINA E NOSSAS DORES)
Realizando o antigo desejo – ir com a minha filha conhecer Mariana – chego àquele miolinho da antiga cidadezinha onde as igrejas se cumprimentam, uma defronte à outra, com um outro prédio da mesma época, bonito também, a compor a pracinha onde paramos o carro para olhar tudo com mais esmero e entusiasmo. Já havia estado ali algumas vezes antes, mas o sabor de agora era bem mais adocicado. A menina que, ainda adolescente, sempre cheia de vontade própria, não se animou a me acompanhar à cidadezinha mineira de nome igual ao seu, agora estava ali, mulher feita, acompanhando-me e ao irmão, na visita por mim tão ansiada.
Dela, da minha menina, posso dizer que, desde bem pequena, sempre teve o nariz arrebitado, não só na face, como na maneira de não se submeter às minhas vontades. Tudo tinha que ter um porquê, desde a minha sonhada ida, com ela, à sua cidade homônima, até a coleção que fiz de jornais, do dia em que ela nasceu até completar um ano, para que, mais tarde, pudesse entender, um pouco que fosse, o ano em que veio ao mundo. E olhe que aquele fora um ano de muitos acontecimentos de suma importância – a luta pela anistia, a primeira greve do magistério aqui do Rio pós 64, o ABC fazendo renascer o movimento operário, coisas em que sua mãe estivera engajada e sobre as quais queria que tomasse conhecimento mais adiante... E ela sempre quis saber o motivo das coisas, inclusive dessa tal coleção...
Mas, voltemos à chegada à cidade de Mariana.
Mal o carro foi estacionado, um pobre homem, franzino, negro, com uma gritante camisa amarela, veio em nossa direção, tentando ajudar-nos com alguma informação sobre o lugar, com certeza à espera de que o saber que dominava sobre o lugar pudesse lhe render alguns trocados.
Na verdade, a aproximação do moço me encontrou com o olhar fixo na direção oposta, justo reparando no antigo prédio, o que fica do lado oposto da igreja maior, atraída que fui pelas bandeiras negras, uma em cada uma de suas janelas, numa evidente prova de um luto mais do que severo por aquelas bandas. E, antes que ele pudesse dar início a qualquer negociação a respeito da sua tarefa de guia de nosso olhar por aquele entorno, eu fui logo indagando:
- “Bom dia! Ali é a Câmara Municipal, não é?”
- “Sim, senhora, é, sim.”
- “E por que está com tantas bandeiras pretas caídas de suas janelas? Por que o luto? Quem morreu? O senhor sabe?”
- “Ah, eu não sei o nome, não, dona, mas foi, eu acho, um deputado, gente importante, não daqui, não, acho que de São Paulo...”
- “Nossa, quem terá morrido?” – pensei, e já fui em direção ao tal prédio, em busca da informação de que carecia, onde havia um outro senhor, no alto da escadaria, lendo calmamente o seu jornal. Quem gosta de política não tem jeito – até a morte de um deputado, seja do mais nanico e vendável dos partidecos que temos, dá vontade de saber...”
- “Senhor, bom dia! Por que a Câmara está de luto? Quem morreu? Qual deputado?”
- “Deputado? Não, senhora! Não foi deputado, não. Foi Nelson Mandela.”
Não tive palavras. Emudeci. Nem consegui agradecer ao tal senhor, que retirara os olhos do seu jornal para falar comigo. Em silêncio, desci as escadas que tinha diante de mim, retornando à pracinha onde estavam os demais. Com o olhar turvo pela emoção, escarafunchei com meu olhar ao redor, fazendo-o dar voltas em busca da figura do pobre moço negro. O que não sabia quem era Mandela. E ali estava ele, colaborando para que meu filho estacionasse o carro. O que dizer naquela hora? Nada. Nada. Nada. Apenas, dentro de mim, um sentimento novo em relação a ele. Um afeto, uma muda aproximação, uma impotência desmedida, esta era a verdade. Sobre um homem franzino, pobre e negro que imagina ser Mandela um deputado de São Paulo, sem dele saber nem o nome nem a história – entranhada, como ele nem imagina, na sua própria vida nesta terra – nada há a ser dito. Aliás, cada vez estou mais impotente – eu e minhas palavras – para dar conta do que vivo e sinto neste mundão de Deus, de homens e de mulheres que, ao desconhecerem o caminho até aqui vivido, deixam de construir os instrumentos para a sua liberdade e humanização.
Sempre vivi e senti a escola como profundamente marcada pela desigualdade e pelo contexto socioeconômico. Mas, nas brechas que havia – e as sentia vivamente – atuava e lutava por transformação e justiça.
Hoje, o espaço está se encurtando, meus amigos? O determinismo ampliou suas asas e o poder dos que se perpetuam em privilégios e açoites físicos e simbólicos já não contam com meios de serem contidos?
Onde me refugiar para ir até o final da jornada? Devo me bastar com fugazes encontros com amigos queridos, com o convívio com os filhos, com um grande amor vivido na maturidade, com as palavras com que expulso meus demônios, e seguir adiante? Cancelar as assinaturas de jornal, desligar a TV, alugar filmes românticos na locadora da esquina e seguir adiante? E como faço para esquecer o nosso MANDELA brasileiro, mineiro, meu irmão? Terão bastado os dez reais dados a ele que o fizeram sair correndo pela rua ao lado da Igreja Matriz?
(Texto publicado originalmente no blog dijaojinha.blogspot.com )
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