BACALHAU À MODA
Eu não sei se apelo para o ditado “quem nunca comeu melado quando come se lambuza” ou se tomo pela mão a parlenda “cadê o anel que estava aqui?” para abrir esta conversa sobre meu dia de ontem, sobre uma parte dele, pelo menos. Mas, isso nada interfere no acontecido: começando a puxar o fio por uma ou por outra ponta, o marcante precede e é o trivial simples: minhas ações cotidianas que se vinculam às ações de "mulher do lar" têm em si um tipo especial de imã, em estado de alerta, para atrair irresistivelmente algo em torno para forçar o processo a dar errado, a cumprir pelo menos uma curva que lhe dificulte o caminho... Tem jeito, não: Bobeei, dancei.
Poderia dar errado numa última hipótese caso fosse uma outra pessoa a estar à frente do acontecido? Pois comigo, o inesperado – saído não sei de que antro – se anuncia e vem lépido para me abraçar, tomando as rédeas da situação, tornando o mais improvável elemento aquele que pula na minha frente, com um sorriso debochado de canto de boca, poderoso como só ele, a fazer com que o que eu pretendia construir aconteça de modo vário. Seu ar é de puro deboche, por saber que vai me levar por caminhos insuspeitos que me trarão algum prejuízo, uma surpresa esquisita, que seja. E digo vário porque sou bondosa e me esforço para abrir a cortina de meu olhar para o que parece ser o mais leve e enfeitadinho que se apresenta. Em Português correto, vário não expressa o acontecido. E foi fato mesmo, nada de fato alternativo, que pudesse ter sido criado por mim para disfarçar o que se passou. Foi despropositado. Indesejável. Totalmente desnecessário e aporrinhante.
Coisa rara, raríssima
mesmo, vesti-me de cozinheira, logo cedo, avental à frente do corpo, toda
bonitinha e dei de fazer ontem um bacalhau bem bonito, à moda de Cã, fiel
escudeira que cuidava da casa de minha querida Diva (Goulart). Havia ganho uma linda
peça pelo Natal e ela vinha aguardando o momento de virar verdade, ser degustada
a contento, como devia merecer. Já o havia dessalgado durante dois dias, como
manda a boa cozinha, peguei na dispensa a minha panela de barro, a maior delas,
buzuntei-a com vontade de um saboroso azeite, separei ovos, providenciei o seu
cozimento, azeitonas pretas, muita cebola – das grandes para serem cortadas em
rodelas e das pequenas para serem acrescidas inteiras ao molho –, um bom azeite,
especiarias roubadas do armário do filho cozinhador, leite, alho em abundância,
pimentões coloridos em rodelas fartas... creio que isso. Viria dali um belo e
delicioso bacalhau ao leite, que, com uma pimentinha e um vinho branco, seria uma
ode ao sonho.
Foram cerca de duas horas
de ação cuidadosa e cheia de capricho, vivendo à vera a inspiração posta numa ação
concreta de belos sabores e odores. Tudo feito a contento e com o devido
carinho e zelo. Mas Marphy, o inimigo, esteve a meu lado sem que eu me desse
conta. Um canalha sonso esse companheiro de empreitada. E ele nunca me deixa na
mão, surge seja para o que for – seja para arrumar uma mala e me fazer esquecer
o maiô quando estou a caminho de uma praia, seja para me fazer esquecer o lápis
de que necessito para fazer as anotações no livro que carrego para onde for,
seja no que providenciou ontem, silencioso e pérfido: a pedra de meu anel, um belo
ônix todo sestavado, que eu trazia no dedo, desgarrou-se da base e sumiu ao final dos meus providenciamentos à beira do
fogão. Nunca poderia mesmo supor tal mergulho. Um salto olímpico digno de medalha, por suposto.
Hoje darei com calma uma vasculhada na cozinha inteira. Mas, a dúvida está aqui no meu colo: terá sumido em meio ao caldo
colorido que encharca aquelas lindas postas com as quais eu pretendo me
deleitar logo mais? Terei cuidado, Murphy. Não abrirei minha mordida com a gana
com que teria se tivesse sua bochecha ao meu alcance. Se ele afundou, eu o
encontro. E ainda brindarei a você e à sua malignidade. Eu sou mais eu, "seu" danado! Larga do meu pé e vá dar um tilte na luz lá pelas bandas da cela do Sergio Cabral, meu santo! Ele, sim, precisa ter suas carnes aquecidas. Não meu anelzinho de estimação...
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