segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017



Hora de me servir, está à mesa


(6/2/2017)

A sensação é exatamente esta, a de ter algum prato posto à mesa para que eu possa me servir, como bem quiser e me aprouver. Dada a sua fama de ser raro, incomum de ser produzido entre humanos e, como tal, ser tido como marca emblemática de sua confeiteira, veio transportado da cozinha com todo o zelo, cruzou o trajeto que o trouxe de onde foi preparado e vinha permanecendo em estado de espera e aportou ao local onde sua apreciação possa se dar, a mesa de almoço, feita para receber alimentos a serem degustados. Sob meus olhares, agora está em sua nova e desafiadora condição. É pois chegada a hora de, com inteligência, tino e autopreservação, tomando os imprescindíveis cuidados com a minha saúde diante de um prato assim tão emblemático, tomar assento, buscar talheres apropriados ao nobre momento e dar partida ao que me cabe diante do que vejo...


É assim que consigo descrever uma função primordial que a escrita tem para mim. Sei que são várias e falo das que precedem esta que hoje quero colocar sob luzes. Tudo começa em que tenho clareza de que gosto de escrever e de que encontro pessoas que gostam de ler o que escrevo, principalmente quando me dou a graça de, ante minhas observações em relação ao mundo, escarafunchar alegria no movimento do cotidiano, buscando imperceptíveis gotas de humor que existem desafiando o nosso olhar, como que à espera de uma outra perspectiva para que possam invadir o mundo. Ontem, por exemplo, passar na estrada do Engenho do Mato e, bem em cima de uma curva onde há um radar, olhar pro lado e ver que algum brasileiro maroto inaugurou um tal açougue denominando-o de “O Radar das Carnes” não tem uma humor subjacente? Tenho um faro para esse tipo de coisa e gosto de contar pros outros estas pequenas bobagens fazedoras de risos. Similarmente ao que há na Justiça, sinto-me como uma juíza de pequenas causas do humor, imbuída, sabe-se lá por quem, da missão de aliviar as agruras do dia-a-dia com o que pode virar riso.


Fora esse lado do meu prazer em escrever – o de gostar de expressar, contar alguma novidade, buscar diálogo, contar histórias – há o da militância, hoje quase que exclusivamente feita à base de textos e mais textos postos a público pelas redes sociais. É só acontecer mais algum desmando, a mídia tradicional dar mais uma de suas tendenciosas interpretações, a população mais esquecida ser golpeada mais cruelmente, esse tipo de assunto que vem cada vez mais se banalizando, que eu sempre me vejo impelida a falar sobre. Sempre tenho a presunção de que tenho algo a dizer, e digo. 

Isso tudo é público, seja escrever para brincar com a vida, escrever para debater política, ... Nada a acrescentar, pelo menos por agora. Na verdade, não é nada que se enquadre nos escalões da alta Literatura, é apenas conversa fiada de quem quer expor e trocar ideias. Daí, tantas croniquetas do cotidiano saem de mim e que, se engraçadinhas, tanto melhor.


Outro motivo, este mais sério, cirúrgico, profilático que me leva a escrever tem a ver com as minhas dores da alma e a minha tentativa de colocá-las ao sol para quarar em busca de amenizar seus efeitos dramáticos. E é essa dimensão da escrita que motiva esta minha escrita de agora, desta linda manhã de fevereiro, aqui em Itaipu, a escrita que vem das tripas e expõe o que é retirado dos rincões da alma e expondo o achado psicológico, interno, dolorido a uma análise a olho nu. Daí a imagem do prato servido para dele me servir. Extirpar de onde está oculto e trazer a meu autoexame. Pura medicina à moda gastronômica da alma em suas penas.

Quando escrevo sobre coisas do sofrimento, não posso sequer dizer que gosto da escrita que surge, pois ela expurga dor e sofrimento. Mas, com certeza, posso assegurar que prezo o ato de haver escrito, pois alivia a alma. Escrever, nesse caso, é terapêutico e tem o dom de me fazer alterar o lugar das coisas em mim, ao me permitir colocar o que me submete fora de mim. Aí facilita a minha ação de ter o mal, sem retoques, ao alcance de minha própria análise. Ele perde forçar ao vir à luz. Lidando com o que me faz sofrer com menos medo, posso dissecá-lo, parti-lo em partes menores e até expulsá-lo de onde estava acostumado a viver, agora expulso, por minhas palavras, das sombras em que andava escondido. Saindo de dentro e vindo para um novo lugar, o mal perde força, tem seu tamanho e potência reduzidos e posso voltar a tomar tenência na vida. É a minha intenção ao escrever lavando minhas feridas. O fantasma deixa de estar à espreita, vem para o centro do rinque e somos, enfim, dueladores em idênticas possibilidades de vitória – aquilo que me faz sofrer e eu.  

Nessas novas circunstâncias, olho no olho, dá pra enfrentar o monstro, fazendo essa dissecação que a escrita permite. Como falei no início, talheres ajeitados nas mãos, posso – creio que só assim – ver a mim mesma com uma ação propositiva que me tire da inércia e me ponha num outro caminhar, a caminho da cura afetiva.  É que está a meu alcance e eu tento. Apetite não ma falta. Cansaço do que já se faz repetitivo além do tolerável. Hei de vencer!



Nenhum comentário:

Postar um comentário