sábado, 25 de março de 2017

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O DENTE MAIS DO QUE TARDIO
                                         (sem data, encontrada aqui, perdida...)                    

Numa certa medida me alegrou saber que havia aquele último dente, temporão, embutido lá embaixo, por trás da gengiva, adormecido, impassível, sabe Deus desde quando. A satisfação vinha de saber que também nisso, Maninho e eu tínhamos afinidade, pois esse também era o caso dele, meu ídolo da infância. Nem sei por que sei isso, mas a minha memória tem mesmo uma forma estranha de existir: na maioria das vezes nada registra, nada traz à consciência, em outras vem com força, trazendo informações inesperadas. Um dente a mais, inútil, é bem verdade, tanto em Maninho como em mim. A verdade é que, já adulta, numa daquelas radiografias, dente por dente (Aliás, dente por dente, só conheço em se tratando de radiografias mesmo...), quando de um tratamento dentário mais detalhado, foi constatada a anomalia – um dente a mais na arcada inferior, à direita, junto ao osso. Orientada pela dentista da ocasião, tranquilizei-me, imaginando que ele prosseguiria em seu descanso, valendo-se de um inimaginável uso capião de parte do território de minha boca. E assim viveríamos para sempre, ele quieto lá dentro, eu viva cá fora sem nem me lembrar de sua existência despropositada. Era o caso do dente de Maninho, que seguiu com ele, não sei bem pra onde... Mas, o mundo e todas as coisas se movem. Passaram-se alguns anos e o belo adormecido começou a despertar. Nem suponho qual príncipe encantado veio beijá-lo para lhe provocar a saída de seu esconderijo, até então tão bem guardado. Vez por outra, fazia deslizar a língua pelas bandas internas da gengiva e começava a constatar a presença do novo ser vindo à luz. E pior: com aquela serrinha típica dos dentes infantis a perturbar a paz do recinto bucal, provocando incômodo e arranhando, vamos dizer assim, aquela que teimava em vistoriar, dia após dia, o local do parto que se fazia cada vez mais à vista – a minha pobre língua, que, sem dúvida, foi quem mais sofreu com a novidade. Agora, vejam se não é para escrever sobre o assunto... A esta altura da vida, ter dente de serrinha nascendo, é coisa não só para divã de psicanalista como para tema de novas escrevinhações. Não é que eu queira. Impõe-se. Faz pensar. Até me lembra o Xexéo, quando Rosinha governadora reclamou, ou quis processá-lo, algo assim, porque ele sempre estava a comentar sobre atitudes dela, ao que ele respondeu mais ou menos assim: “Eu apenas olho e vejo o que a senhora faz...”
Com uns e outros, já cansei de reclamar de meus sonhos adolescentes, de meu romantismo exacerbado, de minha incapacidade para um tipo de vida sem graça e rotineira, da minha impossibilidade para virar adulta no sentido do conformismo diante do mais fácil ou mais comum. Mas daí a aceitar tamanha explicitação de minha criancice vai uma grande distância. É até revoltante ter que passar por este vexame que expõe, sem dar margem a dúvidas, a minha alma perpassada por dúvidas e incertezas extemporâneas. Como coisa de gente miúda, que ainda não cresceu. O dentista foi o primeiro a rir de mim. Filhos, os dois, também não deixaram passar em branco o simbolismo da situação. Só falta eu apostar de vez na crença de uma infância presente ainda hoje de maneira desmedida a povoar meu ser inteiro, colocar o danado do dente embaixo do travesseiro e fazer um pedido à fadinha. É, talvez seja o caso: se nada me coloca confortável naqueles quefazeres adultos, que roubam ilusões e enquadram cada qual em certezas e doses desmedidas de conformismo, quem sabe está nas mãos da tal fada interceder por meu amadurecimento?
Nossa! Que conflito! É, mas pedir, não peço, não. Vou adiante do jeito que sei ir. Isso, para mim, seria pedir para piorar. O que me alimenta e me faz feliz são os resíduos de minha meninice e juventude que me salvam, não do endurecimento das artérias, mas da petrificação das ideias. E ainda tenho que ir tirar os pontos, como que para não me deixar esquecer a situação infantil que se instalou em minha boca que tantos sabores e dissabores já provou durante tantos e tantos anos de vida. Vá entender! Vocês, aí, que me leem, façam lá suas leituras. Que cada qual dê o nome que quiser ao significado esdrúxulo do que acabo de viver. De minha parte, continuo firme no meu entendimento de que esta é mais uma daquelas coisas que estão no mundo, só que eu preciso aprender... E viva Paulinho da Viola, que, com sua música, nos ajuda a entender muito mais do que apenas dentes!


3 comentários:

  1. Adoro quando você descreve e escreve um cotidiano tão cotidiano que vira poesia!

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  2. Parabéns mais uma vez querida amiga por transformar algo prosaico num delicioso texto.

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