quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Chuvisco com fel
28/09/2015
Saio do cinema onde fui ver "Que horas ela volta?", achando que não foi à toa que a vida me encaminhou para ver esse filme justo aqui em minha terra de nascença. Aqui eu vivi meus primeiros anos, minha formação inicial, aqui eu ouvi, como elogio, que Zebeque, o motorista de papai, "era um preto de alma branca"; também aqui, ouvi pessoas queridas, muitas delas cujos exemplos tive como aula - incessante e magna - referindo-se aos empregados como "essa gente", dando cruel visibilidade ao entendimento - tido e havido como correto e justo - de que o mundo se dividia em "nós" e "eles", piores, inferiores, e isso como jeito do mundo funcionar naturalmente; na mesma Beira Rio, banhada pelo Paraíba, meu vizinho de frente, vi crianças trabalhando desde bem meninas ainda, acompanhando a mãe lavadeira, vindo à cozinha da casa de meus pais, entrando pela porta dos fundos, trazendo uma trouxa de roupa, bem lavada e passada, vivenciando obrigações de adultos, ali, diante de mim, de idade tão próxima, mas com destino tão mais privilegiadamente delineado; vi, ouvi, absorvi, como minha natural "educação de base", que o mundo funciona de um jeito onde alguns cá estão para servir, enquanto outros para serem servidos; vi a doméstica ter seu prato preparado pela patroa, sem direito a escolher se queria um pouquinho mais de souflé ou de bife. Tudo sob as leis de Deus e a providencial caridade dos cristãos. Se algo não seguisse nessa ordem e estratificação e houvesse algum olhar dos de baixo para os de cima sem a devida humildade seria indício seguro de que o pobre era ingrato, mal acostumado, quem sabe até insolente , por "não saber o seu lugar" e ir além, confundindo as coisas. Com certeza, seria porque se deu a ele o pé e ele, perdendo a dimensão da realidade, queria a mão, um abusado...
Saio do cinema querendo rever o filme para apreender mais e mais detalhes, tamanha a identificação com situações já vividas por mim, não só na terra natal como pela vida afora: o papel higiênico de segunda no "banheiro de empregada" do apartamento do casal cujo voto costumava ser similar ao meu, sempre pela esquerda; a crítica por parte de uns e de outros, pela "falta de limites" que as empregadas têm lá em minha própria casa, desde que comecei a brincar de ser adulta; a falta de jeito de um conhecido ao ter que dividir a mesma mesa com a moça que trabalhava como doméstica em casa, sem que ela tivesse que esperar a "sua vez" de almoçar.
(Pequena nota de percurso : lembrei muito dos amigos Laura Esteves e Raymundo Oliveira (com certeza, eles nem sabem do quanto me reeducaram!), em cuja casa pela primeira vez dividi a mesa com a empregada, amiga do casal. Homenageio-os aqui, o que, aliás, já não era sem tempo).
Pois o filme foi apenas o aperitivo para o que viria. Estive presente, no mesmo dia, a uma reunião festiva, onde foi servido um mais que delicioso coquetel. Pois não é que uma senhora, conhecida da dona da festa, que estava a meu lado, em fraterna conversa de rememorações, não chegou perto dela e, altiva, com o olhar faiscando, não lhe chamou a atenção?: "Fulana, preste atenção, a sua empregada acaba de levar dois pratos cheirinhos de camarão e servir ao motorista! Convém você dar uma verificada."
Saí dali com ânsias. A vida em sociedade também tem destes cruezas. As marcas parece que não cansam de se evidenciar. Vontade mesmo eu tive de perguntar à malvada e insensível mulher: "por que não vai e não volta, criatura?"
Até agora ainda insisto em tentar pacificar meu coração. Não é fácil. Quando me lembro, o sabor das delícias por mim saboreadas ficam como que abafadas pelo amargor da inconformidade que tive que engolir.
Cruzes!

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