domingo, 3 de setembro de 2017

Covardia e amargura assumidas

Pode parecer contraditório, já  que gosto muito do jogo às  claras, sem panos quentes ou artifícios que escamoteiem a realidade. A franqueza sempre conta com minha simpatia, mesmo que seja de difícil absorção ao primeiro gole e a gente tenha, algumas vezes, que engolir seco. Mas é o que prefiro: o que é ser mesmo exposto tal qual é. Aliás, como hoje, por mais que doa, está sendo mostrado aos quatro cantos em nosso país: pensamentos à vista, dos ultraconservadores aos "mais puros" esquerdistas. Todo mundo - ou quase todo mundo - nu, sem disfarces. Isso dá  segurança no trato com as pessoas, com os grupos, já que demonstram claramente a que vieram, sem máscaras  que possam disfarçar suas reais intenções e maneiras de ser. Cobertos de arranjos e dissimulações, o indivíduo e seus representantes dificultam o diálogo mais nítido com o outro.

Mas para mim, a crueza da realidade tem limites. Já olhei, me emocionei, me senti responsável, pequena, incapaz, torta de dor e de insignificância diante da foto da criança turca morta à beira mar. Mas tal dureza não desce, não vence minha incapacidade de absorver o mundo e suas infindáveis perversidades. "Curtir" tamanha brutalidade é impossível para as minhas mãos envelhecidas e incapazes. Compartilhar também se mostra a meus olhos totalmente inócuo, para dizer o mínimo. Nem que eu queira, não consigo. Meu "adestramento" pela vida afora não inclui tais capacidades.

Será a clareza que a idade vai trazendo de que perdi o jogo? De que perdemos a luta, de que somos  mesmo irracionais diante da fragilidade do outro? De que a luta não é pra valer? De que nossas armas são acanhadas, impotentes, perdedoras?

Aquela musiquinha inesquecível que tia Sandra e tio Arthur Arthur Malheiros ensinavam na Escola Viva levando as crianças a entoarem em alto e bom som "eu sou capaz", era um blefe. Estou envelhecendo e nada feito. Não somos capazes! Não somos capazes de coisa nanhuma! Não mudamos nada! Aquele senhor, que nunca pôde ir de avião ao Nordeste ver seus filhos, estar hoje ao meu lado no aeroporto, é uma possibilidade de tipo gota no oceano. Seu momento de reeencontro afetivo deu muito lucro por aí afora e por isso o jogo foi jogado. Sem o lucro, seu meio de transporte constinuaria sendo o ônibus demorado e cansativo.

Hoje minha boca tem gosto de fel. O mundo é mesmo mau, como me ensinou uma velha amiga. Movimento histórico em direção à justiça e humanização? Brincadeirinha de mau gosto. Cantiga para boi dormir. Receita sem eficácia alguma!

Hoje só vejo a criança morta. Ela não precisa estar aqui retratada. Ela me domina por inteiro, lá no fundo da alma. Cores e possibildiades? Só as vejo quando me distraio. E ainda tenho que carregar culpas por ter perdido tempo com banalidades. Covardia e amargura é o mínimo que digo de meu estado de espírito nesta manhã azul e clara só por fora.

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