SOBRE
VIOLÊNCIAS (OU SOBRE A PROPAGAÇÃO DO SOM DOS SINOS)
(Escrito
em 26/07/2014)
Nesta manhã tão friinha, que me viu sair da cama mais cedo do que poderia sugerir o clima tão adequado para a demorada preguiça embaixo das cobertas, a vontade é tanta de me fazer entender, que faço uso de uma historinha inventada, como que uma alegoria, para dar conta do que quis e quero transmitir sobre o pensamento que me invadiu logo ao acordar.
Nesta manhã tão friinha, que me viu sair da cama mais cedo do que poderia sugerir o clima tão adequado para a demorada preguiça embaixo das cobertas, a vontade é tanta de me fazer entender, que faço uso de uma historinha inventada, como que uma alegoria, para dar conta do que quis e quero transmitir sobre o pensamento que me invadiu logo ao acordar.
Peço licença, então, e começo a minha narrativa, pura invencionice, mas,
creiam, com o único e (creio que) generoso propósito de ver se me faço
entender, por mim mesma e pelos que sempre mantêm a boa vontade de me ler neste
espaço. Espaço que uso, quase que diariamente, para exercitar a minha
permanente e excitante brincadeira com as palavras que me leva às pessoas,
trazendo-as também até mim, no possível diálogo que, mesmo virtual, aquece meu
coração.
O começo é real, o que vem depois é que é pura imaginação para criar um exemplo acerca do que quero explicitar. Vamos lá: a TV faz uma extensa matéria, com imagens, com entrevista ao cidadão-herói, com tempo dedicado à sua história de menino que nasceu pobre, cresceu pobre, mas que quis “vencer”. E venceu! Pois lá está ele, já maduro, com seus quarenta e alguns anos, na Universidade, mediante seu esforço próprio, sem necessitar de cotas nem qualquer “mãozinha” do gênero. Ou seja: ele quis, se esforçou e conseguiu. Tornou-se um universitário!
No dia seguinte, foi a vez de jornais impressos e on line insistirem no assunto. Novamente o indivíduo é exaltado como exemplo a ser seguido por todo e qualquer brasileiro desvalido da sorte. A nítida e insistente ideia presente na notícia é a de que quem não consegue ascender socialmente é por responsabilidade exclusivamente sua. Se um conseguiu, por que os demais não o conseguem? Nada é dito claramente, mas o que especulo é que uma hipotética Dona Maria, doméstica, que esteve atenta à notícia veiculada, comentará com uma sua vizinha Lourdes o sucesso do seu igual, aquele cidadão pobre como ela, que foi atrás, sozinho, de seus sonhos. Em minha especulação, os argumentos deverão se suceder e a história será repetida à exaustão de tal modo que qualquer sujeito em torno, em iguais circunstâncias sócio-econômicas, desprezará, na definição de seu destino, qualquer determinação que escape a si e que venha das suas circunstâncias histórias. Se ela e toda a sua prole desejarem, com afinco, “vencerão na vida”.
Dona Lourdes (seguindo com minha historia ilustrativa), sendo merendeira na escola próxima da comunidade, olhará para cada menino ali matriculado como um perdedor, e, pior, por sua vontade própria. Perdedor porque não sabe lutar pelo que almeja. Numa oportunidade qualquer em que vir qualquer um numa atitude considerada incorreta, uma brincadeira de mau gosto na fila, um palavrão dirigido ao colega de turma, coisas assim, imediatamente o condenará por ser fraco e não querer subir na vida. Quase que naturalmente, pela lição aprendida da amiga que ouviu da vizinha, nele coloca toda a responsabilidade por seus gestos e formulações. E isso ela espalha não apenas para os alunos da escola, mas para seus filhos, vizinhos, sobrinhos, netos. A ideia que ela passará para Matildes, Zildas, Pedros e Zoraides é apenas esta – a de quem quer, é capaz. Não conseguindo, ninguém mais é responsável pelo seu fracasso, apenas cada um, sozinho, por sua própria conta e risco.
Por sua vez, Matildes, Zildas, Pedros e Zoraides têm lá seus amigos, e, logo, Zoroastros, Penhas, Marias, Lucias, Jorges e todos as pessoas de suas relações, de um jeito ou de outro, aprenderão essa lição, a de que a sociedade é uma “sociedade aberta”, onde cada qual pode galgar novas posições, dependendo apenas de seu próprio esforço e determinação.
O começo é real, o que vem depois é que é pura imaginação para criar um exemplo acerca do que quero explicitar. Vamos lá: a TV faz uma extensa matéria, com imagens, com entrevista ao cidadão-herói, com tempo dedicado à sua história de menino que nasceu pobre, cresceu pobre, mas que quis “vencer”. E venceu! Pois lá está ele, já maduro, com seus quarenta e alguns anos, na Universidade, mediante seu esforço próprio, sem necessitar de cotas nem qualquer “mãozinha” do gênero. Ou seja: ele quis, se esforçou e conseguiu. Tornou-se um universitário!
No dia seguinte, foi a vez de jornais impressos e on line insistirem no assunto. Novamente o indivíduo é exaltado como exemplo a ser seguido por todo e qualquer brasileiro desvalido da sorte. A nítida e insistente ideia presente na notícia é a de que quem não consegue ascender socialmente é por responsabilidade exclusivamente sua. Se um conseguiu, por que os demais não o conseguem? Nada é dito claramente, mas o que especulo é que uma hipotética Dona Maria, doméstica, que esteve atenta à notícia veiculada, comentará com uma sua vizinha Lourdes o sucesso do seu igual, aquele cidadão pobre como ela, que foi atrás, sozinho, de seus sonhos. Em minha especulação, os argumentos deverão se suceder e a história será repetida à exaustão de tal modo que qualquer sujeito em torno, em iguais circunstâncias sócio-econômicas, desprezará, na definição de seu destino, qualquer determinação que escape a si e que venha das suas circunstâncias histórias. Se ela e toda a sua prole desejarem, com afinco, “vencerão na vida”.
Dona Lourdes (seguindo com minha historia ilustrativa), sendo merendeira na escola próxima da comunidade, olhará para cada menino ali matriculado como um perdedor, e, pior, por sua vontade própria. Perdedor porque não sabe lutar pelo que almeja. Numa oportunidade qualquer em que vir qualquer um numa atitude considerada incorreta, uma brincadeira de mau gosto na fila, um palavrão dirigido ao colega de turma, coisas assim, imediatamente o condenará por ser fraco e não querer subir na vida. Quase que naturalmente, pela lição aprendida da amiga que ouviu da vizinha, nele coloca toda a responsabilidade por seus gestos e formulações. E isso ela espalha não apenas para os alunos da escola, mas para seus filhos, vizinhos, sobrinhos, netos. A ideia que ela passará para Matildes, Zildas, Pedros e Zoraides é apenas esta – a de quem quer, é capaz. Não conseguindo, ninguém mais é responsável pelo seu fracasso, apenas cada um, sozinho, por sua própria conta e risco.
Por sua vez, Matildes, Zildas, Pedros e Zoraides têm lá seus amigos, e, logo, Zoroastros, Penhas, Marias, Lucias, Jorges e todos as pessoas de suas relações, de um jeito ou de outro, aprenderão essa lição, a de que a sociedade é uma “sociedade aberta”, onde cada qual pode galgar novas posições, dependendo apenas de seu próprio esforço e determinação.
Mas, amigos todos, vamos e venhamos: essa é uma lição mentirosa, equivocada,
ilusória, chego mesmo a considerar criminosa. Gerações e mais gerações, por
força de um sino que badala ao amanhecer e espalha seu som para além do entorno
da igreja de onde parte, receberão em cheio a repercussão, o som, a imagem, as
ondas emanadas por uma criatura que, distraidamente, espalhou, como uma pedra
jogada num lago, a lição que aprendeu na TV. Sem a menor intenção de fazer
maldade a ninguém, sem ter a mais ínfima noção do tanto que estão sendo
instrumento da violência de um discurso midiático, Helenas e Veras, Josés e
Antônios repassam a história do jovem senhor que saiu da miséria contando
apenas com sua fé e sua vontade. E cada qual, munido de esperança, que logo
talvez se transforme em frustração, segue acreditando que precisa ser forte e
carregado de vontade para ir além do que seus pais conseguiram ir. E que não
foram por culpa deles!
Sininho, a ativista política |
Pergunto, então, a esta altura destas reflexões que ouso compartilhar com cada um: quem pratica mais violência – Sininho, a moça das passeatas de junho, usando de suas próprias armas, ou os grandes badalos dos grandes sinos e seus poderosos sineiros que tocam a cada manhã, e que, durante todo o dia, a cada dia, anunciam ideias que ampliam a violência contra cada ser humano – aquele que é pobre, claro, à frente de todos os demais – e que se atreve a viver neste mundo? E pior, alimentando sonhos?
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