A menina em corpo de avó
Há muitos e muitos anos, havia uma menina que queria muito que o mundo virasse uma coisa diferente do que é, sem esta de existirem duas garotinhas, uma se deliciando com um sorvete inteiro e outra sem saber o que é sorvete, e os adultos analisando que, se havia um sorvete e duas meninas, estatisticamente, cada uma havia se deliciado igualmente, a ponto de borrar a boca e a roupa toda de tanto prazer. E assim, manipulando essa matemática de sorvetes e não-sorvetes, de pessoas e não-pessoas, lá iam eles, tranquilizando suas próprias consciências enquanto ouviam sua razão dissertar para seu coração que, desde que o mundo é mundo, sorvetes não são para todos...
A menina cresceu sempre com esta mania de ver crianças provando igualmente das delícias da vida, fossem sorvetes, bonecas ou carrinhos... Adulta, sempre procurou se afastar do seu próprio lado (Ah, sim, ela também sempre teve um pedacinho dentro de si que apregoava que se a farinha é pouca, meu pirão primeiro) e se afastar dos demais adultos que pudessem achar natural esta divisão mal feita das coisas. Queria porque queria que as coisas do mundo fossem para todas as pessoas do mundo. E assim, birrenta, cresceu inconformada.
Mas a vida é sempre surpreendente e bela, apesar de todos os seus percalços e azedumes...
Vocês nem sabem e nem vão acreditar! Hoje eu me encontrei com ela, é bem verdade que já bem diferente daquela menina de antes, pois que já está uma senhora, até simpática e gorducha, mas com um olhar suave – de menina mesmo! E como gostei deste encontro! Ela ia feliz da vida pela rua e quando parei para cumprimentá-la, sabe o que ela disse? Que está convivendo com uns amigos que dá gosto de ver. Ali não tem esta lógica do cada um por si e deus por todos, não...: um manda poesia para o outro, só para alegrar suas manhãs; outro, acreditem!, sai tirando fotos por aí só para suavizar o coração dos amigos que estão distantes. É verdade, dizia, ele sai atrás, entra escondido em casa fechada, busca o melhor ângulo e fotografa, só para ver o amigo distante enternecido diante das lembranças; tem uma que também é uma danada para tirar fotos belíssimas, tira até de uma árvore que sente falta de quem está longe e anda, irrequieta por areias que se fazem movediças pela saudade. E tem mais: um fala latim, pois sabe que isso recorda bons momentos para os amigos em seus tempos de escola; esse, lembrava ela, é o mesmo que manda musiquinha para uns e outros, ela até está esperando uma pra ela (nisto continua igual, ciumenta de dar dó...); há aquele que, esperto como poucos no manuseio dos segredos da Web, faz piadas, poemas e oferece aulas, seguidas e didaticamente bem estruturadas para que todos possam, igualmente, soltar a voz nas estradas; outro, vejam!, manda letras que brilham, além de fotos de filhas e neto, entregando-se de peito aberto aos amigos; tem um que é quase um fiel e atento plantonista - à menor dúvida de quem quer que seja, sai correndo feito um doido pelo Jardim São Benedito e adjacências, vasculhando casas e redescobrindo seus antigos moradores para dar notícias sobre cada qual; tem a que não dorme e escreve coisas poliglotas e cheias de um inigualável polihumor, só para dar alegria a quem madrugar no dia seguinte; E que dizer dos voyeurs, sempre espreitando o que acontece para, quando necessário, darem seus palpites certeiros em prol da continuidade dos prazeres recordatórios do grupo? Tem de tudo, animava-se ela.
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