Chuvisco com fel
(Escrito
em 28/09/2015)
Saio do cinema onde fui ver "Que horas ela
volta?", achando que não foi à toa que a vida me encaminhou para ver esse
filme justo aqui em minha terra de nascença. Aqui eu vivi meus primeiros anos,
minha formação inicial, aqui eu ouvi, como elogio, que Zebeque, o motorista de
papai, "era um preto de alma branca"; também aqui, ouvi pessoas
queridas, muitas delas cujos exemplos tive como aula - incessante e magna -
referindo-se aos empregados como "essa gente", dando cruel
visibilidade ao entendimento - tido e havido como correto e justo - de que o
mundo se dividia em "nós" e "eles", piores, inferiores, e
isso como jeito do mundo funcionar naturalmente; na mesma Beira Rio, banhada
pelo Paraíba, meu vizinho de frente, vi crianças trabalhando desde bem meninas
ainda, acompanhando a mãe lavadeira, vindo à cozinha da casa de meus pais,
entrando pela porta dos fundos, trazendo uma trouxa de roupa, bem lavada e
passada, vivenciando obrigações de adultos, ali, diante de mim, de idade tão
próxima, mas com destino tão mais privilegiadamente delineado; vi, ouvi,
absorvi, como minha natural "educação de base", que o mundo funciona
de um jeito onde alguns cá estão para servir, enquanto outros para serem
servidos; vi a doméstica ter seu prato preparado pela patroa, sem direito a
escolher se queria um pouquinho mais de souflé ou de bife. Tudo sob as leis de
Deus e a providencial caridade dos cristãos. Se algo não seguisse nessa ordem e
estratificação e houvesse algum olhar dos de baixo para os de cima sem a devida
humildade seria indício seguro de que o pobre era ingrato, mal acostumado, quem
sabe até insolente , por "não saber o seu lugar" e ir além,
confundindo as coisas. Com certeza, seria porque se deu a ele o pé e ele,
perdendo a dimensão da realidade, queria a mão, um abusado...
Saio do cinema querendo rever o filme para apreender
mais e mais detalhes, tamanha a identificação com situações já vividas por mim,
não só na terra natal como pela vida afora: o papel higiênico de segunda no
"banheiro de empregada" do apartamento do casal cujo voto costumava
ser similar ao meu, sempre pela esquerda; a crítica por parte de uns e de
outros, pela "falta de limites" que as empregadas têm lá em minha
própria casa, desde que comecei a brincar de ser adulta; a falta de jeito de um
conhecido ao ter que dividir a mesma mesa com a moça que trabalhava como
doméstica em casa, sem que ela tivesse que esperar a "sua vez" de
almoçar.
(Pequena nota de percurso : lembrei muito dos amigos Laura
Esteves e Raymundo Oliveira (com certeza, eles nem sabem do quanto
me reeducaram!), em cuja casa pela primeira vez dividi a mesa com a empregada,
amiga do casal, aprendendo a fazer o mesmo em minha própria casa. Homenageio-os
aqui, o que, aliás, já não era sem tempo).
Pois o filme foi apenas o aperitivo para o que viria.
Por obra e graça do traçado da vida, estive presente, no mesmo dia, a uma
reunião festiva, onde foi servido um mais que delicioso coquetel. Pois não é
que uma senhora, conhecida da dona da festa, que estava a meu lado, em fraterna
conversa de rememorações, não chegou perto dela e, altiva, com o olhar
faiscando, não lhe chamou a atenção?: "Fulana, preste atenção, a sua
empregada acaba de levar dois pratos cheirinhos de camarão e servir ao
motorista! Convém você dar uma verificada."
Saí dali com ânsias. A vida em sociedade também tem
destas cruezas. As marcas parece que não cansam de se evidenciar. Vontade mesmo
eu tive de perguntar à malvada e insensível mulher: "O que é isto, criatura?
Joga no lixo a sua prepotência, infeliz!"
Até agora ainda insisto em tentar pacificar meu
coração. Não é fácil. Quando me lembro, o sabor das delícias por mim saboreadas
ficam como que abafadas pelo amargor da inconformidade que tive que engolir.
Cruzes!
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