SURPRESAS SEMPRE
SURGEM... E NOS FAZEM VIVER E PENSAR...
Galo que me olha espantado quando vejo TV e faço palavras cruzadas ao mesmo tempo |
Parte 1
Final de tarde, um olho na TV, outro nas palavras cruzadas.
Não sei o motivo, mas tem sido assim nos últimos tempos: raramente apenas a
novela. Mesmo a das seis, que tem o tal comunista bonitão e a consequente
inveja que me apossa diante dos prazeres vividos por Carolina Dieckeman em seus
braços, nem isso me ocupa por inteiro. Assim, os olhos vão e vêm,
desembaraçados, da TV para a página do jornal e vice-versa. Creio que a
produtividade de uma vida inteira está virando doença... Duas ações ao mesmo
tempo? (Pânico silencioso!). Qualquer dia (Deus me livre e guarde!), vou ficar
tal qual aquela amiga que, acabado o último gole de seu café, na famosa padaria,
mesmo com o assunto ainda pelo meio, com o grupo de mulheres ainda em plena
briga por espaço para ver que conta a última do último ano, levanta-se e se põe
a postos para encerrar o encontro, pronta a se dirigir ao caixa e pagar a
conta, com ares de que já está na hora de “ticar” de sua lista o tal “encontro
tradicional natalino de amigas que um dia militaram no movimento dos
professores”. Papa Francisco me proteja! Que eu faça bem feito, mas sem
ansiedade, e uma coisa de cada vez, por favor!
Esquisito o hábito, mas a verdade é que, com a idade, as
nossas formas de ser parecem se sedimentar. Até costumo falar disso com pessoas
amigas, que, tanto para o bem como para o mal, é como se os calos que vamos
formando pela vida se acentuem com o passar do tempo. Os individualistas
tornam-se egoístas de primeira enquanto aqueles outros, conhecidos por sua
bondade, chegam às raias do altruísmo, quando solicitados por alguma
circunstância da vida. E, assim, com tudo o mais em nossos comportamentos...
Comigo, o gosto pela organização e por ter o que preciso à
mão cresce cada vez mais e tem feito com que, após lido o jornal do dia, as
palavras cruzadas sejam guardadas numa cesta de palha ao lado da cama, as
quais, pela facilidade de contar com canetas e lápis 2B (de preferência, apontados
à moda das irmãs Calomeni – pontas feitas à estilete, enormes –) disponíveis já
na primeira gaveta da mesinha de cabeceira, acabam por facilitar a combinação
das ações – a de atentar para o enredo televisivo simultaneamente à atividade
complementar de descoberta de palavras que podem preencher aquelas horizontais
e verticais, quase a cada dia. Só não é atividade diária pelo meu próprio jeito
de ser onde sempre é possível que o planejado seja irremediavelmente invertido
ou transformado em outra coisa, bem outra.
Sobre elas, as palavras cruzadas, não é pelo fato de cada
vez se tornarem mais fáceis, certamente, pelo exercício frequente de dar conta
do dito passatempo, que eu tenha até aqui me desinteressado de preenchê-las.
Apenas, cada vez se tornam mais fáceis e rápidas de serem concluídas. E as respostas
já surgem quase sem muito pensar. Dá para ver o beijo do casal apaixonado na
telinha e ir escrevendo a letra grega ou as iniciais do ator global, pedidas
para preenchimento dos espaços ainda em branco. Quase sem pestanejar. A repetição
dos enunciados (ou anunciados, como disse uma colega um dia desses...), qualquer
hora acaba por me tirar o interesse pela brincadeira vespertina...
Hoje é que, como há muito não via, deparei-me com um
conceito inusitado que me pôs a pensar: fator
de desvalorização de um bem. Com três letras. Com certeza por ter acabado
de trocar de carro e verificar que o valor pago há dois anos por ele, caiu à sua
terça parte, não tive muito que pensar. Também indicava a possível resposta
pelo espaço a ela destinado, como que me condicionando o pensamento. Três
letras? Bom, a primeira resposta surgiu rápida: USO. Até a escrevi no devido lugar. Mas seria isso
mesmo?
O problema foi depois continuar a tarefa da brincadeirinha com
aquelas tais palavras, dando conta de concluir o exercício. Dei de pensar em se
isso era fato de fato e acabei largando o que fazia para vir dedilhar as minhas
letrinhas em torno da dúvida instalada.
Será mesmo o uso que faz desvalorizar um bem? Valerá essa
definição para todo e qualquer objeto? Ou, apenas se restringe ao que em nossa
sociedade capitalista é tido e havido como mercadoria? E onde foi parar o tal
valor de uso que define o valor das mercadorias? Estarão minhas mãos
desvalorizadas pelo tanto que produziram vida afora? E minha capacidade de
pensar e programar aulas e conferências? Projetos e escritos?