Em 6/11/2013
BREVES REFLEXÕES APÓS DUAS BREVÍSSIMAS HORAS NA RUA
Ser brasileira é...
... aguardar o momento de
atravessar a rua, postada na rampinha própria para cadeirantes, calminha
da silva, pensando na sessão de análise da qual acabava de sair, e ser
surpreendida por um moço de bicicleta, adentrando o mesmo trechinho especial de
calçada onde eu estava postada, enquanto reclama, com voz e cara de poucos
amigos: “... Mas, a senhora, logo na minha passagem?” E eu cumpro o que ele,
por certo, nem de longe poderia imaginar: me assusto e vejo que surpresas estão
sempre por vir, mesmo ali, naquele momento onde apenas me movia a vontade de
facilitar a próxima passada e descer mais suavemente do “alto” da calçada
usando o recurso alheio. Coisa de 20 cm que, aos sentires de meus fartos anos,
são quase que um esporte de tipo radical, tamanha a dificuldade (zombo de mim
mesma mas não perco a piada).
... ir a uma dermatologista e ser
atendida mais do que rapidamente, sem nenhum exame mais acurado dos pontos de
minha pele onde percebo alterações – uma
manchinha no braço e uma aspereza nas costas –, e sair do consultório com uma
lista razoável de loções e cremes, claro que todos caríssimos, e nem ter ânimo
de iniciar o tratamento já que a especialista concluiu, dizendo: “Mas, vc sabe,
não? Estas coisinhas são chatinhas de curar, caso não veja resultado, volte.
Estou sempre aqui...” E eu sair dali pensando que com salário de professora
universitária federal – apesar de aposentada no topo da carreira – não dá para
brincar de comprar remedinhos duvidosos. Pela menos a ilusão da cura se há de
ter...
... no supremo sacrifício de evitar mais
uma despesa com táxi, sair à procura de um ponto de ônibus, em pleno bairro de
Icaraí, e deduzir que ali, perto de um poste, onde estão duas ou três pessoas
com cara de espera, é que meu ônibus irá parar, apesar de nenhuma sinalização
haver a respeito. E ficar feliz com a resposta afirmativa da moça que aguarda
sua condução: “Sim, é aqui”. Que alívio ter um mínimo de capacidade de dedução!
A Lógica Formal me serviu para alguma coisa!
... no ônibus, concluir a leitura do meu
jornal e, tomada pela mania de observar o entorno, encontrar a frase, escrita
com tinta bem forte na parede suja de um prédio à direita: “Trago a pessoa
amada em poucos dias”; e ficar imaginando quem cai nessa conversa e, pior, ter
certeza de que há quem caia. E por que não cair? Qual a diferença entre comprar
um novo perfume – anunciado, com pompa e circunstância, de que há de lhe fazer
uma mulher irresistível –, e ir à cartomante que lhe assegura o retorno do
homem amado? O que penso é que uma coisa
é certa: há quem acredite na promessa estampada no muro, caso contrário, a
poderosa trazedora de quem se foi não se anunciaria assim. Ou não é esse um
pressuposto do “deus “mercado: se há o anúncio, há quem acredite dele
necessitar, não? Não é por outro motivo que, por mais lindas e completas que
sejam as plantas de apartamentos expostas em jornais à procura de compradores,
não têm entre seus móveis nem uma estantezinha de livros sequer. Se livros
fossem prioridades como carnes de churrasco, tanto quanto a churrasqueirinha na
convidativa varanda lateral, com certeza, na sala vizinha haveria pelo menos
uma sólida estante repleta de livros. Duvido quem ache!
... ainda no ônibus, sentada na parte de
trás, tratar de me deslocar apressadamente para a frente, ao perceber que um
rapaz pobre, mal vestido, entra e vem em minha direção, ele, com certeza,
apenas pensando em se sentar, e eu, na
dúvida, tentando me esquivar de mais um assalto, com a alma carregada de
preconceito. E sofrer com isso – o dilema, o velho dilema, de tentar ser
generosa – e a vida a me empurrar para ser uma pessoa em eterna contradição
entre o pensamento e o gesto. Sentimentos idênticos e embaraçosos de quando
vejo alguém jogado na rua dormindo e sigo adiante, aparentando tranquilidade e com
a alma em frangalhos diante da absurda situação que não cansa de se repetir...
... enfim, carmeando como sempre e como
nasci para fazer, depois deste pouco tempo fora de casa, ser brasileira é
descer do ônibus, cruzar a rua e ir caminhando sob as frondosas árvores que me
protegem e dão novo alento ao meu respirar, até entrar em casa, fazendo o maior
esforço de todos para tentar diluir as bobagens que vivi: que a médica
robotizada se humanize, que eu valorize minha caminhada, que o moço da
bicicleta chegue bem ao seu destino, que eu reconheça o privilégio de ter o
salário que tenho e, mais que tudo, que
o pobre rapaz do ônibus possa me perdoar. Ele, sim, que sobrevive carregado de
dores de verdade – saberá ler o nome do ônibus? Como lhe atende a
medicina? Qual será seu ínfimo salário? Ele que, para culminar as agruras de
seu cotidiano, ainda se encontra com uma senhora de olhar generoso, mas não o
suficiente para dele não se esquivar...
Mal sabe que a tal senhora voltou para casa, com o espírito povoado de
conflitos, estatelada que está diante de si mesma, ela que tanta
afinidade tem com os desvalidos, mas que é uma eterna aprendiz – e nunca
aprende – a superar o medo e se fazer igual.
Nenhum comentário:
Postar um comentário