quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Em 6/11/2013
BREVES REFLEXÕES APÓS DUAS BREVÍSSIMAS HORAS NA RUA

Ser brasileira é...

... aguardar o momento de atravessar  a rua, postada na rampinha própria para cadeirantes, calminha da silva, pensando na sessão de análise da qual acabava de sair, e ser surpreendida por um moço de bicicleta, adentrando o mesmo trechinho especial de calçada onde eu estava postada, enquanto reclama, com voz e cara de poucos amigos: “... Mas, a senhora, logo na minha passagem?” E eu cumpro o que ele, por certo, nem de longe poderia imaginar: me assusto e vejo que surpresas estão sempre por vir, mesmo ali, naquele momento onde apenas me movia a vontade de facilitar a próxima passada e descer mais suavemente do “alto” da calçada usando o recurso alheio. Coisa de 20 cm que, aos sentires de meus fartos anos, são quase que um esporte de tipo radical, tamanha a dificuldade (zombo de mim mesma mas não perco a piada). 

... ir a uma dermatologista e ser atendida mais do que rapidamente, sem nenhum exame mais acurado dos pontos de minha pele onde percebo alterações  – uma manchinha no braço e uma aspereza nas costas –, e sair do consultório com uma lista razoável de loções e cremes, claro que todos caríssimos, e nem ter ânimo de iniciar o tratamento já que a especialista concluiu, dizendo: “Mas, vc sabe, não? Estas coisinhas são chatinhas de curar, caso não veja resultado, volte. Estou sempre aqui...” E eu sair dali pensando que com salário de professora universitária federal – apesar de aposentada no topo da carreira – não dá para brincar de comprar remedinhos duvidosos. Pela menos a ilusão da cura se há de ter...

... no supremo sacrifício de evitar mais uma despesa com táxi, sair à procura de um ponto de ônibus, em pleno bairro de Icaraí, e deduzir que ali, perto de um poste, onde estão duas ou três pessoas com cara de espera, é que meu ônibus irá parar, apesar de nenhuma sinalização haver a respeito. E ficar feliz com a resposta afirmativa da moça que aguarda sua condução: “Sim, é aqui”. Que alívio ter um mínimo de capacidade de dedução! A Lógica Formal me serviu para alguma coisa!

... no ônibus, concluir a leitura do meu jornal e, tomada pela mania de observar o entorno, encontrar a frase, escrita com tinta bem forte na parede suja de um prédio à direita: “Trago a pessoa amada em poucos dias”; e ficar imaginando quem cai nessa conversa e, pior, ter certeza de que há quem caia. E por que não cair? Qual a diferença entre comprar um novo perfume – anunciado, com pompa e circunstância, de que há de lhe fazer uma mulher irresistível –, e ir à cartomante que lhe assegura o retorno do homem amado?  O que penso é que uma coisa é certa: há quem acredite na promessa estampada no muro, caso contrário, a poderosa trazedora de quem se foi não se anunciaria assim. Ou não é esse um pressuposto do “deus “mercado:  se há o anúncio, há quem acredite dele necessitar, não? Não é por outro motivo que, por mais lindas e completas que sejam as plantas de apartamentos expostas em jornais à procura de compradores, não têm entre seus móveis nem uma estantezinha de livros sequer. Se livros fossem prioridades como carnes de churrasco, tanto quanto a churrasqueirinha na convidativa varanda lateral, com certeza, na sala vizinha haveria pelo menos uma sólida estante repleta de livros. Duvido quem ache!

... ainda no ônibus, sentada na parte de trás, tratar de me deslocar apressadamente para a frente, ao perceber que um rapaz pobre, mal vestido, entra e vem em minha direção, ele, com certeza, apenas  pensando em se sentar, e eu, na dúvida, tentando me esquivar de mais um assalto, com a alma carregada de preconceito. E sofrer com isso – o dilema, o velho dilema, de tentar ser generosa – e a vida a me empurrar para ser uma pessoa em eterna contradição entre o pensamento e o gesto. Sentimentos idênticos e embaraçosos de quando vejo alguém jogado na rua dormindo e sigo adiante, aparentando tranquilidade e com a alma em frangalhos diante da absurda situação que não cansa de se repetir...

... enfim, carmeando como sempre e como nasci para fazer, depois deste pouco tempo fora de casa, ser brasileira é descer do ônibus, cruzar a rua e ir caminhando sob as frondosas árvores que me protegem e dão novo alento ao meu respirar, até entrar em casa, fazendo o maior esforço de todos para tentar diluir as bobagens que vivi: que a médica robotizada se humanize, que eu valorize minha caminhada, que o moço da bicicleta chegue bem ao seu destino, que eu reconheça o privilégio de ter o salário que tenho e, mais que tudo,  que o pobre rapaz do ônibus possa me perdoar. Ele, sim, que sobrevive carregado de dores de verdade – saberá ler o nome do ônibus?  Como lhe atende a medicina? Qual será seu ínfimo salário? Ele que, para culminar as agruras de seu cotidiano, ainda se encontra com uma senhora de olhar generoso, mas não o suficiente para dele não se esquivar...  Mal sabe que a tal senhora voltou para casa, com o espírito povoado de conflitos, estatelada que está diante de si mesma,  ela que tanta afinidade tem com os desvalidos, mas que é uma eterna aprendiz – e nunca aprende – a superar o medo e se fazer igual.




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