quinta-feira, 26 de dezembro de 2013


Em 12 de novembro

SEGUNDA HISTORIETA DA PRIMA DE MÂRFI

Parte 1 – Prolegômenos

Falo de uns e outros, mas eu também sei pouquíssimas coisas do mundo da prática, do tipo: criança com dor de garganta, o que dar? Por que a roupa de cama da amiga é mais cheirosa? Qual sabão em pó ela usa? (O pior é que quando a encontro, pergunto, não anoto, e depois não me lembro do nome do dito cujo na hora de comprar). Na verdade, décadas de análise já me instrumentalizaram o suficiente, é que eu não tinha um interesse legítimo pelo assunto... A carne-seca se põe de molho junto ou separado dos demais salgados em véspera de feijoada? Quantas águas mesmo têm que ser trocadas? O feijão está caro ou barato?  E o preço da gasolina neste posto, está valendo a pena? E aquele outro produto? E o outro? O outro? O outro? ...

Não importa o assunto. Há aqueles sobre os quais não tenho instrumentos registrados para com eles dialogar. Defeito de fábrica mesmo. São João do Paraíso com Morro do Coco deu muito certo para algumas coisas, mas para outras a junção amorosa entre os genes do belo casal deu resultado nulo. “Quantos quilos Martin estava pesando na última consulta, Carmen?” – perguntava Geraldo Rollemberg, querido amigo e pediatra das crianças. “Sei não, Geraldo, é melhor olhar na ficha dele...”. Para mim, o importante era se a criança estava alegre, saudável, quanto “estava quilando”, como bem dizia Mari, a minha mais velha, pouco importava... “Minha filha nasceu com 51 cm” – me disse a aluna. “Que máximo!” – digo para não decepcionar a mãe novata, sem a menor ideia quanto à tal medida de bebê: é grande, médio ou pequeno? O elogio surge apenas do fato de perceber o ar de orgulho da mãe, eu que me mantenho totalmente despreparada quanto ao concreto mesmo do que é indicado como tamanho de bebês que vêm ao mundo. (Como essas, muitas outras coisas não me interessam nem um pouquinho. E sobre elas, respondo na base da intuição ou da pura observação quanto à expectativa alheia. “Dona Carmen, comprei um caro 2 ponto zero! – me diz, entusiasmado, o amigo motorista. E eu: “Que legal, ‘seu’ Hélio! Deve ser potente, hein?” Daí, até aproveito para numa conversa com o mesmo “Seu” Hélio dizer: “O seu casamento com Anézia é mesmo um caso de amor 2.0, não é “seu” Hélio?” O sentido ficou gravado. Isso é que entra no meu coração e no meu arquivo de utilidades para possíveis trocas futuras. Desse modo, 2.0 pode ser um homem bonito, um prato apetitoso, uma boa palestra dada, enfim, qualquer coisa que se deseje qualificar muito positivamente. Mas é preciso bastante cuidado. Há que se ficar atento à expressão das pessoas quando emitem palavras, quando olham, quando silenciam, coisas assim, do campo da expressão visual e do corpo que são capazes de comunicar e atribuir sentido. Você realmente precisa olhar e ver. Se a comunicação se fizer com palavras, melhor. Mas, nem sempre é necessário, às vezes um leve tremor do canto da boca já diz o que se quer – ou não se quer – perceber.

E é isto mesmo, não tem solução: o mais corriqueiro que percebo é as pessoas saberem coisas e mais coisas enquanto eu ignoro a maioria delas (as coisas, óbvio). E assim vou vivendo, de surpresa em surpresa, à medida que cada qual vai tendo respostas aos desafios postos, enquanto eu apenas observo e me espanto. E hoje, felizmente, prossigo satisfeita e sem mais ficar refém da capacidade informativa alheia, apoiando-me na possibilidade de sermos, cada qual, diferente dos demais. Nessa perspectiva, eu até ganho um lugar no mundo. Minha capacidade de observação me dá determinadas informações, não quantificáveis, por suposto, outras pessoas dão outro tipo de informação, de utilidade mais prática, e assim, cada qual segue fiel aos seus modus vivendi, interagindo em prol de uns e outros. Quem sabe, já posso até me desfazer daquele velho cartazete que tenho preso ao armário do meu escritório, velho que só ele, onde se lê: “Olhei a cidade de cima e nem assim achei o meu lugar”? Está bem, deixo por mais um tempinho por ali e, se daqui a alguns meses, eu reler este texto e estiver confortável diante de mim mesma, aí, sim, ele vai pro lixo. Sim, porque outro aprendizado da análise é não agir por impulso. Esse, infelizmente, eu ainda não consegui aprender na medida certa. Com as coisas menos complicadas até dou conta. Respiro fundo e me dou outra chance para decidir, um pouquinho mais na frente. Mas, se o assunto é mais do campo das emoções profundas, aí a porca torce o rabo, de verdade. A razão se finge de morta e a emoção faz a festa. O último impulso, creio que o mais traumático deles, foi abandonar o marido não apenas uma nem duas, mas três vezes. E, ao contrário das vezes anteriores, da terceira vez o príncipe se esqueceu de promover o final feliz e não veio novamente beijar a bela adormecida, pegou foi uma camisa listrada e saiu por aí... Em resumo: ao contrário de sua mística positividade, o número três, comigo, parece não funcionar. Fui nas águas de Teresinha de Jesus, para quem o terceiro foi aquele a quem Teresa deu a mão e comigo não funcionou (Terá sido ele, Murphy, que mais uma vez atuou em minha caminhada, me emprestando a escada para eu subir no mais alto coqueiro e ficar à espreita, traiçoeiro, espiando a queda da presunçosa dama que se julgada insubstituível? Huuuuum, quem sabe? Afinal Murphy é homem e como bom macho deve ter sido solidário com o companheiro de gênero.).










SEGUNDA HISTORIETA DA PRIMA DE MÂRFI

Parte 2 – Voltando aos trilhos...

Eu bem que poderia continuar... O rol das “ignoranças”, pegando emprestado o termo com Manoel de Barros, é de tal ordem que sou capaz de encher páginas e páginas a respeito de tudo quanto é coisa que nem desconfio como funcionam ou como podem ser solucionadas. Em se tratando de coisas de dona de casa, aí pode ser que dê um livro. Outra hora até me dedico a tal listagem, garanto que ela será bastante alentada.


Para sobreviver diante de tamanha incapacidade – afinal de contas, há sempre compras a serem feitas, probleminhas de saúde a serem encarados, regras bancárias a serem cumpridas, prejuízos financeiros a serem evitados –, adotei algumas normas de conduta para compensar, de alguma maneira, o meu jeito de não deixar a vida me levar tão flagrantemente e dormir menos culpada pelos erros cometidos na véspera: a primeira, foi me acostumar com a ideia de que minhas qualidades passavam por outras paragens, seria necessário me conformar e não ficar me lamentando a cada impossibilidade diante das circunstâncias que a vida ia colocando em meu caminho. Não sei, e pronto! Só não chegava a resmungar “não sei e tenho raiva de quem sabe”, pois às pessoas que sabiam eu sempre precisava recorrer e raiva seria um sentimento impensável de ter em relação a elas.

Devo confidenciar, no entanto, que outras coisas, algumas poucas, eu sei. Mais do que sei, eu sinto. Não espalhem, mas felizmente – não fosse assim, seria injustiça demais – há uns segredinhos, coisinha pouca, mas fundamental, que só eu sei, ninguém mais... Mas, isso, por favor, é segredo, é só entre nós...

O não saber sempre foi tão marcante que até mesmo em relação aos poucos aborrecimentos que tive com alguma outra pessoa, passado um tempo, eu ficava com a sensação de que aquele fulano (ou a fulana) não era legal, que eu tinha alguma coisa contra, que a dita cuja não me agradava, e coisa e tal... Mas, saber o motivo? Nem pensar! Somente sensações sem chegar ao nível cognitivo.

Desse jeito, não havia porque duvidar: para mim, a vida ia tocando de um jeito próprio, com uma afinação/desafinação meio estranha à clave de sol que direciona o quefazer mais usual. Mais do que saber, sempre foi o sentir que me apontou o norte a seguir. Até o saber acadêmico, incessante e permanentemente procurado, sempre teve sua gênese nos sentimentos que conduziam e conduzem o meu viver. Mais que isso, seria exigir demais de mim. Era querer de mim o que eu não tinha disponibilidade para oferecer. Tipo pedir água gelada a quem não tem geladeira.

Nesse passo-a-passo meio fora dos trilhos, a segunda regra para bem-viver que adotei foi a de, dependendo do assunto, escalar alguém para me dar respostas. Assim é que – pura defesa! – adotei a seguinte norma de vida: o importante não é saber, é saber quem saiba. E sempre é assim, de verdade: pegar o telefone e buscar a informação, para mim inalcançável. Questões de saúde? Regina. Questões financeiras? Vera, mais recentemente, Mariana, minha filha. Questões da administração pública? Inesia. Matemática? Godofredo. Juridiquês? Geraldo Machado. Português? Uzinha e Leila. Culinária? Dora (Se bem que nesse quesito é por demais frustrante a constatação de que nada do que ela me ensina, eu consigo imitar. As saladas que faz, eu repito no mínimo duas vezes, de tão deliciosas. As minhas, com ela aprendidas, não me apetecem nem de saída...). Ah, sim, porque tem esse agravante, típico de quem é íntimo de Murphy: nem tudo que me ensinam, eu memorizo. É telefonar, guardar a informação só ali, naquele minutinho em que dela estou precisando, e depois, novamente, retornar ao estado bruto de me valorizar em relação a outros saberes (ou sentires). Aqueles, sobre os quais pedi socorro, desaparecem como que por encanto de minha mente. A quem me indagar agora qual é o remédio “receitado” por Regina para dor de garganta, não se decepcione. Não tenho a menor ideia! Quando necessitar, volto a ligar. Para não sucumbir, dou a desculpa esfarrapada de que no Calomeni não éramos obrigados a decorar tabuada e podíamos contar nos dedos, o que faço até hoje, sem a menor cerimônia. No máximo, quando diante de estranhos, disfarço e escondo as mãos. Se for 7 X 8 ou 9 X 8, aí só mesmo colocando os dedinhos – os mesmos que dona Risette Gusmão colocava para aprender, no piano, as Lições do Hanon – para trabalhar... Se eles dão conta, pra que ocupar minha mente com isso? Sem falar que hoje existe o Google, que não me deixa mentir sobre como não sei coisas... Aliás, até as escolas estão a se repensar para ver o que podem disponibilizar para os alunos que não seja a pura informação, hoje disponível nos quatro cantos do mundo virtual... Se não for para que as novas gerações compreendam o mundo e as relações nele estabelecidas, para, pelo saber construído, dele fazer um espaço de humanização e de justiça social, para quê uma escola concentrada na informação pura e simples que o Google deixa à mão para quem tem acesso à Internet? Seria apenas concentrar esforços para que todos tenham acesso ao mundo digital ou isso é muito, muito pouco mesmo?




SEGUNDA HISTORIETA DA PRIMA DE MÂRFI
Parte 3 – Prólogo

Não pensem que eu não tento saber e fazer coisas. Ideias não me faltam. A vontade de saber fazer algo no campo das utilidades sempre me acompanha. Até fiz ponto cruz no Auxiliadora e me aventurei nuns macramês também por aqueles tempos. O que falta, na verdade, é equacionar uma ligação mais efetiva entre a teoria e a prática, ou seja, as ideias darem certo, na hora em que se concretizam. Coisa pouca, pensava eu até pouco tempo, até me deparar com a dura realidade dos fatos – e fracassos. Como foi o caso da ideia de proteger os pés das cadeiras com saquinhos plásticos, feitos por mim, e que deram errado[1]. Outras tantas foram pensadas e executadas em outras ocasiões, e muitas delas também não funcionaram como esperado. Confesso que só mesmo colares e pulseiras são bem interessantes quando saídos de minhas “mãos de fada”. O mais, parece, não ganha o rumo do sucesso fácil. Nem difícil, essa é a verdade. Então, corrigindo: não ganham o rumo do sucesso, só, sem adjetivar. Vou mesmo, de fracasso em fracasso, mesmo sem estar descrente de tudo...

Conto um deles, para ilustrar esta segunda historieta da prima de Mârfi. Aliás, tudo que foi dito até aqui era apenas a introdução para chegar ao ponto em que chegamos agora, finalmente – mais uma ação deliberada e má de Mârfi em minha vida.

Eis que eu aprendo, sei lá em que lugar, que uma forma, inclusive ecologicamente recomendada, era a de se cortar o gargalo de recipientes de plástico duro, reaproveitando-o para fechar sacos de mantimentos, dos quais se usa uma parte do conteúdo e resta outra a ser utilizada mais adiante – feijão, farinha de mesa, farinha de trigo, esse tipo de mantimento. (Antes de prosseguir é indicado ver o vídeo http://www.youtube.com/watch?v=TgfpqDQuZyI onde é dada toda a explicação a respeito).

Não tive dúvidas! Tesoura amolada em punho, corri para a despensa, mas, Mârfi já estava à espreita, e não consegui encontrar nenhum recipiente em final de uso para ser aproveitado na criação do novo fecho. Mais que apressada, corri ao latão de material reciclável e, aí, sim, encontro um recipiente vazio, apropriado, lavo-o bem lavado e sigo as instruções para dele aproveitar o gargalo que, sob as minhas hábeis mãos, haveria de se transformar no novo e eficiente fecho.

O resultado foi obtido com rapidez. A geringoncinha logo, logo ficou pronta. Mais simples, impossível! Fecho pronto, cadê o que fechar? Volto à despensa para encontrar um saco onde houvesse ainda um tanto de mantimento que pudesse carecer de um novo fecho. O de farinha de trigo foi o primeiro a ser visto, ele que estava selado improvisadamente com um prendedor de roupa. Trato, então, de fazer a substituição. Sai um prendedor de roupa, entra um fecho recém saído de minhas mãos tão criativas. E o saco de farinha de trigo volta à prateleira da despensa, sob novo aspecto. Simpatiquinho. A esta altura, eu já programava fazer dezenas de outros – muita gente haveria de ganhar gargalos-fechos, e até pintados, bem engraçadinhos... Ideia? Claro! Deixem comigo! Já vou tratar de guardar garrafas pet e outras a elas equivalentes para serem reaproveitadas.

Dias depois, Zelinha acha de fazer um empadão de camarão para a minha alegria. Mal sabia eu que Mârfi continuava em meu encalço. Para que fui me meter no mundo da prática e tentar construir fechos? Sento à mesa e me sirvo, em júbilo, da iguaria de que gosto, talvez até mais do que de pão de queijo. Uma garfada, duas, a terceira já foi impraticável. O gole de vinho não aliviou em nada o mau sabor que se anunciava e se espalhava por todos os cantos da boca, em súbito estado de frustração. Tentei prosseguir, mas algo estava profundamente profanado naquele prato recém saído do forno. O sabor preponderante não era de camarão. O empadão era desinfetante puro!

Que ódio! Cadê a tão cantada inteligência da família? Por onde foi passear? Se consigo escrever sobre o fato, por qual motivo o fato em si é tão desastroso? Não havia como ter tido um mínimo de atenção?  Eu não falo tanto que olho e vejo? De que adianta olhar e ver pessoas, se preços, rótulos e congêrenes ficam invisíveis ao meu olhar? Estou neste mundo apenas para ver e observar pessoas, tentando compreender mais saborosamente os tratos e contratos, explícitos ou subjacentes, estabelecidos por cada qual e o resto que se dane? Até o meu dinheirinho gasto com dois quilos de camarão de Atafona? Ouviram bem? Pitu, de Atafona!!!

Pois é isso aí. Quero crer que todos os que vieram até aqui, lendo esta historieta, já adivinharam de que era o recipiente do qual, na minha pressa adolescente, aproveitei a tampa para a minha arte de fazer fechos de sacolinhas de plástico, não? Um óvulo fecundado pelo esperma de meu primo Mârfi para quem acertar. Argh!





[1] Descrita no texto “Continho mais que razoável”, publicado na minha página do Facebook. Fragmento dele: “Para proteger os pés das lindas cadeiras vindas de Minas, elas que ficam ao deus dará, ao lado da piscina, pegando sol e chuva, quando da última tempestade, eu tratei de proteger seus pés de madeira maciça, pensando o quanto lhe poderiam afetar ficarem molhados quando de chuvas muito fortes que formavam poças a lhes deixarem mergulhados, até a estiada chegar e lhe secar os vestígios. Tratei de fazer umas capinhas de plástico bem forte e vesti cada pezinho, de baixo para cima, de modo que, mesmo se chovesse canivete, eles estivessem a salvo. (...)
Ao cair da tarde, (...) e que vou retirar os tais saquinhos para deixar as cadeiras livres de sua proteção tão pretensamente bem imaginada por mim, percebo que cada um deles, ao invés de cumprir o papel que eu, inteligentemente pensei para lhes proteger, qual nada!, cada um havia se transformado num depósito de água acumulada onde repousava cada pé à espera do devido apodrecimento. Tudo que eu pensara, ao contrário! Pés afogados n’água. Madeira boa prontinha para ser corroída pela destruição do elemento ameaçador. (...)


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