Em 12 de novembro
SEGUNDA HISTORIETA DA
PRIMA DE MÂRFI
Parte 1 –
Prolegômenos
Falo de uns e outros, mas eu também sei pouquíssimas coisas
do mundo da prática, do tipo: criança com dor de garganta, o que dar? Por que a
roupa de cama da amiga é mais cheirosa? Qual sabão em pó ela usa? (O pior é que
quando a encontro, pergunto, não anoto, e depois não me lembro do nome do dito
cujo na hora de comprar). Na verdade, décadas de análise já me
instrumentalizaram o suficiente, é que eu não tinha um interesse legítimo pelo
assunto... A carne-seca se põe de molho junto ou separado dos demais salgados
em véspera de feijoada? Quantas águas mesmo têm que ser trocadas? O feijão está
caro ou barato? E o preço da gasolina
neste posto, está valendo a pena? E aquele outro produto? E o outro? O outro? O
outro? ...
Não importa o assunto. Há aqueles sobre os quais não tenho
instrumentos registrados para com eles dialogar. Defeito de fábrica mesmo. São
João do Paraíso com Morro do Coco deu muito certo para algumas coisas, mas para
outras a junção amorosa entre os genes do belo casal deu resultado nulo.
“Quantos quilos Martin estava pesando na última consulta, Carmen?” – perguntava
Geraldo Rollemberg, querido amigo e pediatra das crianças. “Sei não, Geraldo, é
melhor olhar na ficha dele...”. Para mim, o importante era se a criança estava
alegre, saudável, quanto “estava quilando”, como bem dizia Mari, a minha mais
velha, pouco importava... “Minha filha nasceu com 51 cm” – me disse a aluna.
“Que máximo!” – digo para não decepcionar a mãe novata, sem a menor ideia quanto
à tal medida de bebê: é grande, médio ou pequeno? O elogio surge apenas do fato
de perceber o ar de orgulho da mãe, eu que me mantenho totalmente despreparada
quanto ao concreto mesmo do que é indicado como tamanho de bebês que vêm ao
mundo. (Como essas, muitas outras coisas não me interessam nem um pouquinho. E
sobre elas, respondo na base da intuição ou da pura observação quanto à
expectativa alheia. “Dona Carmen, comprei um caro 2 ponto zero! – me diz,
entusiasmado, o amigo motorista. E eu: “Que legal, ‘seu’ Hélio! Deve ser
potente, hein?” Daí, até aproveito para numa conversa com o mesmo “Seu” Hélio
dizer: “O seu casamento com Anézia é mesmo um caso de amor 2.0, não é “seu”
Hélio?” O sentido ficou gravado. Isso é que entra no meu coração e no meu arquivo
de utilidades para possíveis trocas futuras. Desse modo, 2.0 pode ser um homem
bonito, um prato apetitoso, uma boa palestra dada, enfim, qualquer coisa que se
deseje qualificar muito positivamente. Mas é preciso bastante cuidado. Há que
se ficar atento à expressão das pessoas quando emitem palavras, quando olham,
quando silenciam, coisas assim, do campo da expressão visual e do corpo que são
capazes de comunicar e atribuir sentido. Você realmente precisa olhar e ver. Se
a comunicação se fizer com palavras, melhor. Mas, nem sempre é necessário, às
vezes um leve tremor do canto da boca já diz o que se quer – ou não se quer –
perceber.
E é isto mesmo, não tem solução: o mais corriqueiro que
percebo é as pessoas saberem coisas e mais coisas enquanto eu ignoro a maioria
delas (as coisas, óbvio). E assim vou vivendo, de surpresa em surpresa, à
medida que cada qual vai tendo respostas aos desafios postos, enquanto eu
apenas observo e me espanto. E hoje, felizmente, prossigo satisfeita e sem mais
ficar refém da capacidade informativa alheia, apoiando-me na possibilidade de
sermos, cada qual, diferente dos demais. Nessa perspectiva, eu até ganho um
lugar no mundo. Minha capacidade de observação me dá determinadas informações,
não quantificáveis, por suposto, outras pessoas dão outro tipo de informação,
de utilidade mais prática, e assim, cada qual segue fiel aos seus modus vivendi, interagindo em prol de
uns e outros. Quem sabe, já posso até me desfazer daquele velho cartazete que
tenho preso ao armário do meu escritório, velho que só ele, onde se lê: “Olhei
a cidade de cima e nem assim achei o meu lugar”? Está bem, deixo por mais um
tempinho por ali e, se daqui a alguns meses, eu reler este texto e estiver
confortável diante de mim mesma, aí, sim, ele vai pro lixo. Sim, porque outro
aprendizado da análise é não agir por impulso. Esse, infelizmente, eu ainda não
consegui aprender na medida certa. Com as coisas menos complicadas até dou
conta. Respiro fundo e me dou outra chance para decidir, um pouquinho mais na frente.
Mas, se o assunto é mais do campo das emoções profundas, aí a porca torce o
rabo, de verdade. A razão se finge de morta e a emoção faz a festa. O último
impulso, creio que o mais traumático deles, foi abandonar o marido não apenas
uma nem duas, mas três vezes. E, ao contrário das vezes anteriores, da terceira
vez o príncipe se esqueceu de promover o final feliz e não veio novamente
beijar a bela adormecida, pegou foi uma camisa listrada e saiu por aí... Em
resumo: ao contrário de sua mística positividade, o número três, comigo, parece
não funcionar. Fui nas águas de Teresinha de Jesus, para quem o terceiro foi
aquele a quem Teresa deu a mão e comigo não funcionou (Terá sido ele, Murphy,
que mais uma vez atuou em minha caminhada, me emprestando a escada para eu
subir no mais alto coqueiro e ficar à espreita, traiçoeiro, espiando a queda da
presunçosa dama que se julgada insubstituível? Huuuuum, quem sabe? Afinal
Murphy é homem e como bom macho deve ter sido solidário com o companheiro de
gênero.).
SEGUNDA HISTORIETA DA
PRIMA DE MÂRFI
Parte 2 – Voltando
aos trilhos...
Eu bem que poderia continuar... O rol das “ignoranças”,
pegando emprestado o termo com Manoel de Barros, é de tal ordem que sou capaz
de encher páginas e páginas a respeito de tudo quanto é coisa que nem desconfio
como funcionam ou como podem ser solucionadas. Em se tratando de coisas de dona
de casa, aí pode ser que dê um livro. Outra hora até me dedico a tal listagem,
garanto que ela será bastante alentada.
Para sobreviver diante de tamanha incapacidade – afinal de
contas, há sempre compras a serem feitas, probleminhas de saúde a serem
encarados, regras bancárias a serem cumpridas, prejuízos financeiros a serem
evitados –, adotei algumas normas de conduta para compensar, de alguma maneira,
o meu jeito de não deixar a vida me levar tão flagrantemente e dormir menos
culpada pelos erros cometidos na véspera: a primeira, foi me acostumar com a
ideia de que minhas qualidades passavam por outras paragens, seria necessário
me conformar e não ficar me lamentando a cada impossibilidade diante das
circunstâncias que a vida ia colocando em meu caminho. Não sei, e pronto! Só
não chegava a resmungar “não sei e tenho raiva de quem sabe”, pois às pessoas
que sabiam eu sempre precisava recorrer e raiva seria um sentimento impensável
de ter em relação a elas.
Devo confidenciar, no entanto, que outras coisas, algumas
poucas, eu sei. Mais do que sei, eu sinto. Não espalhem, mas felizmente – não
fosse assim, seria injustiça demais – há uns segredinhos, coisinha pouca, mas
fundamental, que só eu sei, ninguém mais... Mas, isso, por favor, é segredo, é
só entre nós...
O não saber sempre foi tão marcante que até mesmo em relação
aos poucos aborrecimentos que tive com alguma outra pessoa, passado um tempo,
eu ficava com a sensação de que aquele fulano (ou a fulana) não era legal, que
eu tinha alguma coisa contra, que a dita cuja não me agradava, e coisa e tal...
Mas, saber o motivo? Nem pensar! Somente sensações sem chegar ao nível
cognitivo.
Desse jeito, não havia porque duvidar: para mim, a vida ia
tocando de um jeito próprio, com uma afinação/desafinação meio estranha à clave
de sol que direciona o quefazer mais usual. Mais do que saber, sempre foi o
sentir que me apontou o norte a seguir. Até o saber acadêmico, incessante e
permanentemente procurado, sempre teve sua gênese nos sentimentos que conduziam
e conduzem o meu viver. Mais que isso, seria exigir demais de mim. Era querer
de mim o que eu não tinha disponibilidade para oferecer. Tipo pedir água gelada
a quem não tem geladeira.
Nesse passo-a-passo meio fora dos trilhos, a segunda regra
para bem-viver que adotei foi a de, dependendo do assunto, escalar alguém para
me dar respostas. Assim é que – pura defesa! – adotei a seguinte norma de vida:
o importante não é saber, é saber quem saiba. E sempre é assim, de verdade: pegar
o telefone e buscar a informação, para mim inalcançável. Questões de saúde?
Regina. Questões financeiras? Vera, mais recentemente, Mariana, minha filha.
Questões da administração pública? Inesia. Matemática? Godofredo. Juridiquês?
Geraldo Machado. Português? Uzinha e Leila. Culinária? Dora (Se bem que nesse
quesito é por demais frustrante a constatação de que nada do que ela me ensina,
eu consigo imitar. As saladas que faz, eu repito no mínimo duas vezes, de tão
deliciosas. As minhas, com ela aprendidas, não me apetecem nem de saída...).
Ah, sim, porque tem esse agravante, típico de quem é íntimo de Murphy: nem tudo
que me ensinam, eu memorizo. É telefonar, guardar a informação só ali, naquele
minutinho em que dela estou precisando, e depois, novamente, retornar ao estado
bruto de me valorizar em relação a outros saberes (ou sentires). Aqueles, sobre
os quais pedi socorro, desaparecem como que por encanto de minha mente. A quem
me indagar agora qual é o remédio “receitado” por Regina para dor de garganta,
não se decepcione. Não tenho a menor ideia! Quando necessitar, volto a ligar.
Para não sucumbir, dou a desculpa esfarrapada de que no Calomeni não éramos
obrigados a decorar tabuada e podíamos contar nos dedos, o que faço até hoje,
sem a menor cerimônia. No máximo, quando diante de estranhos, disfarço e
escondo as mãos. Se for 7 X 8 ou 9 X 8, aí só mesmo colocando os dedinhos – os
mesmos que dona Risette Gusmão colocava para aprender, no piano, as Lições do
Hanon – para trabalhar... Se eles dão conta, pra que ocupar minha mente com
isso? Sem falar que hoje existe o Google, que não me deixa mentir sobre como
não sei coisas... Aliás, até as escolas estão a se repensar para ver o que
podem disponibilizar para os alunos que não seja a pura informação, hoje disponível
nos quatro cantos do mundo virtual... Se não for para que as novas gerações
compreendam o mundo e as relações nele estabelecidas, para, pelo saber
construído, dele fazer um espaço de humanização e de justiça social, para quê
uma escola concentrada na informação pura e simples que o Google deixa à mão
para quem tem acesso à Internet? Seria apenas concentrar esforços para que
todos tenham acesso ao mundo digital ou isso é muito, muito pouco mesmo?
SEGUNDA HISTORIETA DA
PRIMA DE MÂRFI
Parte 3 – Prólogo
Não pensem que eu não tento saber e fazer coisas. Ideias não
me faltam. A vontade de saber fazer algo no campo das utilidades sempre me
acompanha. Até fiz ponto cruz no Auxiliadora e me aventurei nuns macramês
também por aqueles tempos. O que falta, na verdade, é equacionar uma ligação
mais efetiva entre a teoria e a prática, ou seja, as ideias darem certo, na
hora em que se concretizam. Coisa pouca, pensava eu até pouco tempo, até me
deparar com a dura realidade dos fatos – e fracassos. Como foi o caso da ideia
de proteger os pés das cadeiras com saquinhos plásticos, feitos por mim, e que
deram errado[1].
Outras tantas foram pensadas e executadas em outras ocasiões, e muitas delas
também não funcionaram como esperado. Confesso que só mesmo colares e pulseiras
são bem interessantes quando saídos de minhas “mãos de fada”. O mais, parece,
não ganha o rumo do sucesso fácil. Nem difícil, essa é a verdade. Então,
corrigindo: não ganham o rumo do sucesso, só, sem adjetivar. Vou mesmo, de
fracasso em fracasso, mesmo sem estar descrente de tudo...
Conto um deles, para ilustrar esta segunda historieta da
prima de Mârfi. Aliás, tudo que foi dito até aqui era apenas a introdução para
chegar ao ponto em que chegamos agora, finalmente – mais uma ação deliberada e
má de Mârfi em minha vida.
Eis que eu aprendo, sei lá em que lugar, que uma forma,
inclusive ecologicamente recomendada, era a de se cortar o gargalo de
recipientes de plástico duro, reaproveitando-o para fechar sacos de
mantimentos, dos quais se usa uma parte do conteúdo e resta outra a ser
utilizada mais adiante – feijão, farinha de mesa, farinha de trigo, esse tipo
de mantimento. (Antes de prosseguir é indicado ver o vídeo http://www.youtube.com/watch?v=TgfpqDQuZyI
onde é dada toda a explicação a respeito).
Não tive dúvidas! Tesoura amolada em punho, corri para a
despensa, mas, Mârfi já estava à espreita, e não consegui encontrar nenhum
recipiente em final de uso para ser aproveitado na criação do novo fecho. Mais
que apressada, corri ao latão de material reciclável e, aí, sim, encontro um
recipiente vazio, apropriado, lavo-o bem lavado e sigo as instruções para dele
aproveitar o gargalo que, sob as minhas hábeis mãos, haveria de se transformar
no novo e eficiente fecho.
O resultado foi obtido com rapidez. A geringoncinha logo,
logo ficou pronta. Mais simples, impossível! Fecho pronto, cadê o que fechar?
Volto à despensa para encontrar um saco onde houvesse ainda um tanto de
mantimento que pudesse carecer de um novo fecho. O de farinha de trigo foi o
primeiro a ser visto, ele que estava selado improvisadamente com um prendedor
de roupa. Trato, então, de fazer a substituição. Sai um prendedor de roupa,
entra um fecho recém saído de minhas mãos tão criativas. E o saco de farinha de
trigo volta à prateleira da despensa, sob novo aspecto. Simpatiquinho. A esta
altura, eu já programava fazer dezenas de outros – muita gente haveria de
ganhar gargalos-fechos, e até pintados, bem engraçadinhos... Ideia? Claro!
Deixem comigo! Já vou tratar de guardar garrafas pet e outras a elas
equivalentes para serem reaproveitadas.
Dias depois, Zelinha acha de fazer um empadão de camarão
para a minha alegria. Mal sabia eu que Mârfi continuava em meu encalço. Para
que fui me meter no mundo da prática e tentar construir fechos? Sento à mesa e
me sirvo, em júbilo, da iguaria de que gosto, talvez até mais do que de pão de
queijo. Uma garfada, duas, a terceira já foi impraticável. O gole de vinho não
aliviou em nada o mau sabor que se anunciava e se espalhava por todos os cantos
da boca, em súbito estado de frustração. Tentei prosseguir, mas algo estava
profundamente profanado naquele prato recém saído do forno. O sabor
preponderante não era de camarão. O empadão era desinfetante puro!
Que ódio! Cadê a tão cantada inteligência da família? Por
onde foi passear? Se consigo escrever sobre o fato, por qual motivo o fato em
si é tão desastroso? Não havia como ter tido um mínimo de atenção? Eu não falo tanto que olho e vejo? De que
adianta olhar e ver pessoas, se preços, rótulos e congêrenes ficam invisíveis
ao meu olhar? Estou neste mundo apenas para ver e observar pessoas, tentando
compreender mais saborosamente os tratos e contratos, explícitos ou
subjacentes, estabelecidos por cada qual e o resto que se dane? Até o meu
dinheirinho gasto com dois quilos de camarão de Atafona? Ouviram bem? Pitu, de
Atafona!!!
Pois é isso aí. Quero crer que todos os que vieram até aqui,
lendo esta historieta, já adivinharam de que era o recipiente do qual, na minha
pressa adolescente, aproveitei a tampa para a minha arte de fazer fechos de
sacolinhas de plástico, não? Um óvulo fecundado pelo esperma de meu primo Mârfi
para quem acertar. Argh!
[1] Descrita no texto “Continho mais que
razoável”, publicado na minha página do Facebook. Fragmento dele: “Para
proteger os pés das lindas cadeiras vindas de Minas, elas que ficam ao deus
dará, ao lado da piscina, pegando sol e chuva, quando da última tempestade, eu
tratei de proteger seus pés de madeira maciça, pensando o quanto lhe poderiam
afetar ficarem molhados quando de chuvas muito fortes que formavam poças a lhes
deixarem mergulhados, até a estiada chegar e lhe secar os vestígios. Tratei de
fazer umas capinhas de plástico bem forte e vesti cada pezinho, de baixo para
cima, de modo que, mesmo se chovesse canivete, eles estivessem a salvo. (...)
Ao cair da
tarde, (...) e que vou retirar os tais saquinhos para deixar as cadeiras livres
de sua proteção tão pretensamente bem imaginada por mim, percebo que cada um
deles, ao invés de cumprir o papel que eu, inteligentemente pensei para lhes
proteger, qual nada!, cada um havia se transformado num depósito de água
acumulada onde repousava cada pé à espera do devido apodrecimento. Tudo que eu
pensara, ao contrário! Pés afogados n’água. Madeira boa prontinha para ser
corroída pela destruição do elemento ameaçador. (...)
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