sábado, 2 de julho de 2016

ÀS MINHAS PESSOAS
(Escrito em 30/10/2014, quando me dei conta de que dos nove irmãos apenas eu ‘sobrava’ para dar conta de nossas parcas histórias)

Suguem-me. A minha é a última voz que ainda exercita o falar entre os que saíram do ventre de Dona Neném, depois que “seu” João lá colocou seu esperma cansado de brincar de cartas cá do outro lado, provocando em cada qual, a seu tempo, hora e jeito, o surgimento de vidas as mais desengonçadas. A triste constatação é a de que cada um dos filhos foi-se calando, seja encharcando-se de água no fundo de uma pedra-rio postada no meio do caminho (Maninho); sob a mira de um revólver inesperado numa esquina improvável (Rubinho); destroçado sob alguns pneus surpreendentes numa rua movimentada num final de tarde Padrinho Tininho); derrubado por um câncer, mesmo que destrutivo, incapaz de apagar a mansidão de um coração (Padrinho Oswaldo); ou sob o peso de agonias emocionais dessas que fazem sucumbir fortes e fracos, indiferentes ao estado d’alma de sua vítima, de sua inteligência, sensibilidade ou mofo espiritual. Esse foi o caso das duas últimas vozes a se apagar, uma seguida à outra, cada uma num verão de sol e de desesperança. Ao meu julgar, assim partiram Renato e Iza, deixando-me a mim sozinha em meio ao ensurdecimento progressivo e a mudez das duas mais velhas (Dindinha Nilza e Uzinha*) que se perenizam indefinida e inexplicavelmente, a meus olhos nus e incrédulos.
Em mim a sementinha de Seu João, junto com a vida, trouxe-me vontade de viver e de buscar caminhos menos simples, mas bem mais intensos para fazer a travessia. Essa, a ida, já se encurta cada vez mais e isso me parece tranquilo. É assim que a banda toca. Para todos e para cada um. Para o Papa e para o mendigo. Um dia desses, não tem nem uma semana, acordei e apalpei minhas carnes, minhas cochas mais precisamente. Nunca havia vivido nem sentido isso. Eu as acariciava e agradecia por tudo que estavam a viver até aqui. Era como se a elas dedicasse uma oração, silenciosa, carnes e espírito ali reunidos, num louvor à vida e numa preparação para o que virá, o fim, comum a todos, venha quando e como vier. E isso, sem apagar minha intensa vontade de ser gente, de deixar cada vez mais olvidada a dimensão dos aprendizados segregadores e competitivos adquiridos pela vida afora. É viver até onde der, sem abandonar o permanente desejo de aprimoramento espiritual. Aceitando cada vez mais as impossibilidades e defeitos. Amenizando cada vez mais as posturas autoritárias de se saber dono de verdades e de saberes bons para todos e qualquer um.
Minha família é uma construção que se processa em meu íntimo. Dos seus integrantes não recebi conselhos nem exemplos que pudessem compor de fora para dentro, pela palavra, uma história que vem de séculos e que nos trouxe, juntos (?) a este estágio do caminho. Muito mais de silêncios e de interpretações venho escrevendo meu traçado torto e misteriosamente alegre, apesar de tudo.
Hoje sou uma voz solitária. Derradeira figura que ainda une o sangue Cabral ao Pessanha, gerador de tantas gentes que vieram se entrecruzando pela estrada afora, tentando se fazer senhores de sua própria vida, sem que uma base sólida pudesse ganhar mais alguns tijolos e se fosse acrescentando de novos caminhares, múltiplos e enriquecidos pelo diálogo. Na Terra há falhas geológicas. Em nós, há falhas para as quais não inventaram um nome, mas que fazem sofrer e precisam, pelas mãos e consciência de cada qual, ir sendo rejuntadas para não nos deixar sucumbir. Sem história, tudo fica mais grave, mais frágil, menos potente.
Pois bem, qualquer hora, lá irei eu virar uma pequena porção de pó desejosa de se afundar no mar de Atafona.  Até lá, me suguem. Sou de vocês, meus queridos, minha família – de sangue ou não –  com quem prezo estar indo junto até onde tivermos que ir. Sou a única proprietária do pouco que há para ser dividido, contado, partilhado, superado e, com nossa força e disposição, amorosamente espalhado – como uma pedra num lago profundo que, jogada com cuidado e zelo, mansa e por longo tempo, pode  fazer chegar às margens os efeitos das trocas afetivas.
Com amor. Mesmo que nem sempre sabendo distribuir esse sentimento como ensinado por quem sabe amar. Que nem é bem o meu caso.
Lulu

* Uzinha veio a falecer em fevereiro de 2015, só restando vivas hoje, quando revejo este texto – em 2/7/2016 – dindinha Nilza e eu por aqui.
Mesmo pouco nítida, a foto é importante por ser a única que possuo com todos os irmãos, com exceção de Maninho que já havia falecido. Mamãe ao centro. Papai também já havia falecido.

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