Morro do Bumba - Niterói |
Sobre enchentes e lixões, sobre os pobres e nós
Reflexão após a
tragédia (anunciada) de Niterói, escrito na manhã do domingo 11 de abril de
2010.
Primeira reflexão – Vivi
mais uma semana de muitas leituras. Daí não saber ao certo por onde me chegou,
qual texto me trouxe, a ideia de que “nem todos têm talento para enxergar a
realidade”. Mal sabia que tão rapidamente a aplicaria à vida que chegava, desta
feita encharcada de dor e desamparo diante das chuvas que inundaram Niterói,
cidade que adotei por especial encontro afetivo.
Segunda reflexão –
Existem situações que se repetem em nossa vida, situações que nem sempre as
percebemos, até que um dia, sem mais nem menos (ou até com muito mais vida e
muito menos defesa...), a enxergamos com clareza. Parece-me que ou não se está
preparado para ver num dado momento ou acumula-se vida para abastecer o olhar
de capacidade de ver mais adiante; ou a pessoa se vai fortalecendo para viver o
dia em que verá surgir o tal talento glorioso a lhe trazer lucidez para ver.
Terceira reflexão – Das
sessões de análise surge um outro ensinamento oportuno: o de que a primeira
medida para se solucionar um problema é saber-se com um problema a resolver. Sem
tal clareza, a imobilidade tem terreno fértil para se instalar.
Pausa.
O que tudo isso tem a
ver com o sofrimento que arruinou uma parcela sofrida dos pobres de minha
cidade?
O que me assustou diante
da tragédia – a morte, o desassossego, o desamparo, a aflição, a penúria, a
insegurança, a perda da própria história, e tantas quantas outras expressões
puderem vir em meu socorro para significar o que sinto diante do drama que
atingiu aquela “gente humilde” –, o que me assustou, reavivando uma indesejável
nostalgia de futuro, foi o que ouvi de inúmeras pessoas, transformando as
vítimas em responsáveis pelo que se abateu sobre suas vidas.
Aqui uma dolorosa
síntese: - “Quem mandou querer viver no miolo da cidade?”; - “Vai me dizer que não sabiam do perigo..."; - “Quando o governo quer tirar, quem quer sair? Ninguém.”; - “Pobre é
bicho teimoso mesmo... por que não escolheu outro lugar para morar?”
O que me ocorre pensar é que esta nossa chamada
“classe média” não pode ver o que de fato acontece. Se cada olhar
levasse para os corações e mentes de quem assim fala a perversidade da
desigualdade social como produtora de todos estes males, algum gesto seria
imediatamente providenciado para que a única solução para o caso – a busca da
justiça social – fosse ferrenha e coletivamente buscada para que o fosso
econômico entre pobres e ricos deixasse de existir. Aliás, hoje é meio moda se
falar de periferia sem que para a análise de sua existência se coloque em xeque
o antagonismo entre as classes sociais.
O que sinto – e com quanta dor! – é que a
cegueira que se coloca para os não pobres que assim pensam – é uma saída para poderem
seguir adiante e saírem de suas casas e encontrarem os miseráveis que se
espalham pelas ruas, podendo prosseguir, sem caírem por terra, atônitos pela
ineficácia de suas esmolas como instrumento para construir uma sociedade
humanizada
É o que sinto. Se ouvi palavras tão medonhas,
perdoem-me se exponho a mim e as minhas. Nelas acredito. Para mim, a busca de
talento para construir uma nova realidade também passa pelas palavras.
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