sábado, 2 de julho de 2016

Morro do Bumba - Niterói

Sobre enchentes e lixões, sobre os pobres e nós

Reflexão após a tragédia (anunciada) de Niterói, escrito na manhã do domingo 11 de abril de 2010.


Primeira reflexão – Vivi mais uma semana de muitas leituras. Daí não saber ao certo por onde me chegou, qual texto me trouxe, a ideia de que “nem todos têm talento para enxergar a realidade”. Mal sabia que tão rapidamente a aplicaria à vida que chegava, desta feita encharcada de dor e desamparo diante das chuvas que inundaram Niterói, cidade que adotei por especial encontro afetivo.

Segunda reflexão – Existem situações que se repetem em nossa vida, situações que nem sempre as percebemos, até que um dia, sem mais nem menos (ou até com muito mais vida e muito menos defesa...), a enxergamos com clareza. Parece-me que ou não se está preparado para ver num dado momento ou acumula-se vida para abastecer o olhar de capacidade de ver mais adiante; ou a pessoa se vai fortalecendo para viver o dia em que verá surgir o tal talento glorioso a lhe trazer lucidez para ver.

Terceira reflexão – Das sessões de análise surge um outro ensinamento oportuno: o de que a primeira medida para se solucionar um problema é saber-se com um problema a resolver. Sem tal clareza, a imobilidade tem terreno fértil para se instalar.

Pausa.  

O que tudo isso tem a ver com o sofrimento que arruinou uma parcela sofrida dos pobres de minha cidade?

O que me assustou diante da tragédia – a morte, o desassossego, o desamparo, a aflição, a penúria, a insegurança, a perda da própria história, e tantas quantas outras expressões puderem vir em meu socorro para significar o que sinto diante do drama que atingiu aquela “gente humilde” –, o que me assustou, reavivando uma indesejável nostalgia de futuro, foi o que ouvi de inúmeras pessoas, transformando as vítimas em responsáveis pelo que se abateu sobre suas vidas.

Aqui uma dolorosa síntese: - “Quem mandou querer viver no miolo da cidade?”; - “Vai me dizer que não sabiam do perigo...";  - “Quando o governo quer tirar, quem quer sair? Ninguém.”; - “Pobre é bicho teimoso mesmo... por que não escolheu outro lugar para morar?”

O que me ocorre pensar é que esta nossa chamada “classe média” não pode ver o que de fato acontece. Se cada olhar levasse para os corações e mentes de quem assim fala a perversidade da desigualdade social como produtora de todos estes males, algum gesto seria imediatamente providenciado para que a única solução para o caso – a busca da justiça social – fosse ferrenha e coletivamente buscada para que o fosso econômico entre pobres e ricos deixasse de existir. Aliás, hoje é meio moda se falar de periferia sem que para a análise de sua existência se coloque em xeque o antagonismo entre as classes sociais.

O que sinto – e com quanta dor! – é que a cegueira que se coloca para os não pobres que assim pensam – é uma saída para poderem seguir adiante e saírem de suas casas e encontrarem os miseráveis que se espalham pelas ruas, podendo prosseguir, sem caírem por terra, atônitos pela ineficácia de suas esmolas como instrumento para construir uma sociedade humanizada

É o que sinto. Se ouvi palavras tão medonhas, perdoem-me se exponho a mim e as minhas. Nelas acredito. Para mim, a busca de talento para construir uma nova realidade também passa pelas palavras.

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