O PALCO DAS
PRIMEIRAS APRENDIZAGENS
(Escrito em 15 de abril de 2014, rememorando
histórias de 1964* )
Quando eu voltava do Grupo Escolar Benta Pereira, por certo um
almoço simples e delicioso me aguardava. Era comum haver uma bela carne assada,
feita por dona Neném, talvez com batatas fritas, também feitas por ela própria,
no ponto. Isso porque já havia passado aquela época em que quase que
diariamente, o prato preferido era “arroz, farinha e ovo”, até hoje um manjar
dos deuses para mim. Após o almoço, seguia-se o inebriante dormitar no meu
quarto – a essa altura, exclusivo –, do lado da sala de costura, aquele que já
havia sido de dindinha Nilza, depois de Maninho, agora, meu.
A tarde não terminava sem eu dar um jeito de chamar Ângela para
papear sobre alguma questão de solene importância - o feitio do novo vestido a
ser reformado para ir ao Tênis no domingo ou a arrumação da salinha lá de baixo
onde passamos a nos reunir e que eu peguei pra mim, arrumando-a de maneira bem
informal para estar com os amigos.
E é sobre ela que eu quero falar, a primeira sala, a lá da frente,
a mais próxima do Rio Paraíba. Era a que dava para a rua, com suas três
janelinhas, mínimas, dando para a calçada da rua, onde um tempo antes, separada
pelas grades que as guardavam, estive com o querido namorado, que veio me ver, as
grades de proteção contra qualquer contato mais próximo e contaminador, quando
tive catapora, isso em plena adolescência. Janelinha, sempre ela, a mesma, a da
direita, onde também o ouvi, anos mais tarde, me convidar para fugirmos, creio
que para o Sul, eu em vésperas de me casar. Na verdade, até encontrar meu
derradeiro amor, o da plena maturidade, foi essa paixão da adolescência que,
fosse em que ocasião fosse, sempre me fazia tremer nas bases. Até nos tornarmos
o que somos hoje, amigos os mais queridos e interligados.
A “sala da frente”, como era chamada, não sendo a da entrada
principal, era primeira apenas teoricamente. O hábito da família era seguir até
a segunda porta, a que dava para a quarta sala, ela, sim, a nossa entrada
oficial. Assim, vindo da entrada principal – e quase que
exclusivamente usada – , com tantas outras antes dela,
ninguém nunca ia até lá na frente. Estava sempre escura, fechada, até com
jornais protegendo as frestas de suas janelas, ante a poeirada que – diziam as
irmãs mais velhas – entrar da Beira Rio, sempre intensamente movimentada. E eu
bem achava que era assim mesmo, até por ser rota diária das carretas, no final
do dia, indo e vindo, carregadas de cana...
Depois da sala da frente, vinha uma segunda, cuja função nunca foi
definida, onde ficava sempre ocioso um conjunto de poltronas bem antigos,
estilo Luis XV; a seguir, ficava a sala de estudo, com suas estantes fechadas e
uma mesa oval, ao centro, onde cumpríamos nossa tarefa de estudar as lições sob
o comando de Uzinha, nossa grande orientadora em se tratando de saberes
acadêmicos; só então se chegava à sala principal, a que era de estar e de
jantar e onde ficava o telefone, preto, de número 2909, de imensa e
irrepreensível utilidade Dela subia a escada de madeira para o andar de cima
(Ah, como a recordo, nítida!) e se podia seguir para o restante da casa – a
copa, o banheiro, a despensa e a cozinha, que também possuía uma porta para o
quintal, que ia embora, de tão grande. Seus móveis eram belíssimos, mesmo na
minha parca memória, os tenho nítidos à frente do olhar saudoso de minha alma:
os móveis de jantar, com suas quinas arredondadas, num lindo “art noveau”
em uma madeira lisa e brilhosa. Já o conjunto de sofá, nunca vi outro igual,
eram de um estampado de flores, em tons discretos, com os braços e o cume do
espaldar em madeira bem escura, trabalhada, com uns florões, não sei se os
descrevo bem, mas de beleza também inesquecível.
Desse tempo-espaço e de suas entradas, saídas e passagens pouco
usuais, talvez venha parte de minhas contradições. A primeira sala não tinha
destaque, a quarta, sim, era a primeira. Ou seja: não se entra pela frente,
segue-se por fora, pelo lado, até se encontrar a segunda porta, essa, sim, a
boa para se adentrar ao que vem dentro, ao recheio, ao miolo do recheio, o
espaço que distribui aquele que entra para o restante do sobrado – para cima –
os dormitórios, seis; para os fundos, a copa, a cozinha e adjacências...
Acontece que um dia Maninho foi lá pra sala da frente se
esconder para fumar, esquecendo, não sei como, o cigarro aceso, o que provocou
o triste fim de uma das gordas poltronas que compunham o conjunto grandalhão
que residia no local, há tantos anos. E o espaço, agora carente de seu antigo
conjunto de estofados, me instigou a pensar numa função que lhe tirasse da
obscuridade e lhe renovasse a vida. E que servisse ao meu intento de ter um
espaço para reuniões com amigos. Conquistá-la
para dar conta do meu intento gregário foi coisa fácil de conseguir. Uma rápida
conversa com mamãe, e o mais foi acontecendo. Primeiro, a encomenda e a chegada
dos almofadões que trouxe da roça, feita por um colchoeiro de lá de Imburi de
Barra, forrados com aquele tecido de colchão antigo, duros, recheados de crina,
eu acho, quadrados, mas com as quinas arredondadas, rústicos, bem fora dos padrões
convencionais, por certo, mas adoráveis, cheios de estilo, para mim. Nada com
muita consciência, mas, quem sabe eu já não surgia ali o gérmen do
inconformismo dando frutos lá por dentro, eu que já ia ensaiando alguns
pequenos passos para uma vida meio alternativa, gostando de teatro, de música e
querendo ter um espaço para os nossos encontros e conversas?
Lembro bem que Rubinho me ajudou na empreitada da instalação do novo espaço. Das quatro paredes, uma foi
pintada e ficou toda branca, caiada por nós, prontinha para receber frases e
assinaturas dos amigos, visitantes, o que veio a ser feito e ficou “o máximo”
(usando linguajar da época). Uma outra parede, em frente, teve seu reboco todo
escavado (Rubinho à frente, com certeza!), também foi pintada de branco, só que
com a pintura feita diretamente sobre os tijolos, toda irregular, linda, linda,
linda. Ambas as paredes contrastavam com as outras duas, essas completamente
forradas de fotos de revistas, escolhidas de acordo com nossas preferências de
então. Dentre elas, lembro-me bem – e, por incrível que pareça, apenas dela – estava aquela de Einstein, a da língua de fora.
As revistas acumuladas na casa – a Manchete, a Fatos e Fotos, o Cruzeiro –,
com certeza, foram a fonte para a seleção das cores, expressões e significados
que se tornaram adorno, na montagem de um papel de parede totalmente inusitado .
Talvez, disso não me lembro bem, mas é bem possível que tenha tudo sido colado
com aquela cola de farinha de trigo que se fazia em casa mesmo, já que era bem comum usarmos esse tipo de
grude...
A salinha não tinha nome mas tinha função. Era como que uma sala
de viver. Viver mais intimamente, afora a vida social mais daquele jeito dos
clubes e espaços mais pra todo mundo. Um recanto de existir mais nosso, mais
livre, menos maria-vai-com-as-outras... algo assim. Ali ouvi – e me tomei de
emoção – Álvaro Rogério recitar Thiago de Melo e dizer que a liberdade deveria
deixar de existir nos dicionários e vir a habitar o coração dos homens. Pra
quem vinha aprendendo que havia uma linha uniforme e unidirecionada a ser
seguida por todos, gregos e troianos, pensar em liberdade foi quase um êxtase,
pelo tamanho da descoberta.
Ali nos reunimos para algum ensaio de teatro (Hervé cismou que eu
dava para a coisa, chegamos a fazer a leitura de uma peça lá na Associação
Comercial, em volta de uma mesa bem grandalhona). E lá em casa, na salinha, nos
reunimos também em torno de alguma proposta de fazer teatro. Churchil esteve
por lá, me parece que Manoel Luis também. Manel, isso mesmo, esteve sim, o mesmo
Manel que, um dia, no jardim do Liceu me alcançou para que eu assinasse o
documento necessário, com sei lá quantas assinaturas, para a criação do
MDB.
Não sei se na ACC, mas lá em casa, com certeza, Manel estava.
Aninha, uma moça morena que depois sofreu um acidente terrível e de quem nunca
mais tive notícias, também estava lá. Seu namorado (seria marido?) Serguei,
também participou dos ensaios. Éramos, mesmo sem consciência disso, uns
tantos jovens com algumas ideias meio fora do esquadro para os padrões da cidade.
Além de dançar de rosto colado,
queríamos algo mais.
A salinha se tornou local das reuniões de estudo de nossa equipe
da Faculdade – Maria Lucia, Beatriz, Maria Amélia, Mariza Patrão, Beth Lusitano
e eu. Recordo-me de uma noite em que fomos todas pra lá, creio que era para
preparar um trabalho sobre a Grécia, e eu até café com coca-cola tomei para
evitar o sono, o que se tonou totalmente ineficaz. Dormi. Mas, conseguimos,
sempre conseguíamos, e sempre tínhamos sucesso nas nossas apresentações. Um
pequeno desvio que me traz um sorriso ao rosto: num dos seminários, não me
lembro de mais nada, nem disciplina, nem tema, nada, apenas disto: eu tinha que
me referir à Universidade de Cambridge. Pois eu, que sempre detestei inglês,
treinei e falei tão empolada que a turma fez aquele “huuuuuuummmm”, como que a
dizer “olha a pronúncia dela, gente!”. E eu, mesmo encabulada, tive que rir.
Sobre a salinha, de engraçado me vem à memória a ida de Rui
Mauriti até lá para um encontro musical, quando de uma sua ida a Campos,
naqueles tempos dos festivais universitários. Mamãe, que eu julgava ser uma
pessoa ingênua, totalmente sem malícia, ao ver, no dia seguinte, o que ele
registrou na brancura da parede "as
melhores coisas da vida são um whisky
antes e um cigarro depois" veio ao meu encontro, fazendo-se de zangada,
não sei se exigindo que a frase fosse apagada ou se já tendo,ela própria,
tomado tal providência. Eu crente que
ela nem entenderia, qual nada! Danadinha, a tal de dona Neném. Creio que ali
quem fez teatro mesmo foi ela, pois que não era de seu perfil ser contra tais
prazeres, notadamente o que recheava a frase do compositor. Ela e papai eram
dados a gloriosas noites de prazer, a julgar pelos comentários dos filhos mais
velhos. Eu, raspa do tacho, já peguei tempos de silêncio e nenhum arrulho. Mas,
a reprimenda estava bem de acordo com o contexto campista-interiorano de então:
gostar do prazer era uma coisa, outra era publicamente admitir isso. Ainda mais
aceitar que a filha falasse sobre o assunto com um “estranho”, a ponto dele
expor sua preferência num registro escrito.
Ah, Beira Rio, 1449 (por essa ocasião já Avenida Quinze de
Novembro, 341)... histórias não faltam...
aos poucos elas retornam, aos poucos as trago da memória ao coração, da
razão às sensações, do vivido ao que dele ficou... vida em estado de inteireza
absoluta, revivida e reinterpretada. Pura magia do viver!
(E mesmo da salinha, o que aqui registrei envolve apenas uma pequena
parte...)
*Relido e completado hoje, 3 de julho de 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário