quarta-feira, 6 de julho de 2016

A TAL DA (INDESEJÁVEL) LÓGICA CARTESIANA

(Escrito em 23/1/2014)

Conversa na varanda, na praia da infância, coisa boa de se viver. Roda de amigos, também de infância, fresca inigualável em pleno janeiro mais que escaldante em outras plagas – este é o cenário – antes do anoitecer, antes do surgir da lua que, com certeza traria canções e mais canções, ao som de um violão e de nossas vozes, agora menos potentes, mas com mais emoção ainda do que quando éramos jovens e as entoávamos aqui, neste mesmo lugar, neste mesmo lugar de nós todos...


O tema, talvez desnecessário dizer, era a atual conjuntura, as nossas inquietações diante da barbárie um tanto naturalizada que se nos acomete em nosso cotidiano. A querida amiga, defendendo seu ponto de vista diante do impasse em saber o que podemos ou não fazer, ansiosa por saber até que ponto vai o seu poder em fazer mudar a si mesma e ao mundo, exaltada (é o seu jeito, já tão conhecido: o seu tom na conversa é sempre um tom acima), quer porque quer saber até que ponto existe chance de intervenção por parte de cada um:

- “Eu não morro sem saber, afinal de contas, qual o percentual que trazemos dentro de nós que seja puramente genético, hereditário, qual o percentual cultural – que reúne tudo que nos influencia nesta vida – e o que é puramente meu, individual, em nome do que eu posso agir e fazer mudar a mim e ao mundo? Eu tenho uma parte minha, só minha? Ora, porque se for coisa de 10%, eu sei que não posso quase nada... mas e se for mais, eu posso continuar teimando em ir adiante com minha teimosia.” Ou seja: para ela, haveria uma equação, composta de três elementos – o que se traz ao nascer, o que se ganha na vida e o que é apenas individual, de cada um).

Virgem santa!, eu e alguns outros nos espantamos. Para que tais questões foram introduzidas no debate? Quase um caos. Só não houve necessidade de serem introduzidas “questões de ordem” e “inscrições à mesa” pelo bom senso de todos. Afinal, ali não era espaço de nenhuma assembleia. Era coisa de irmãos mesmo, era rezar para haver uma certa boa vontade e que cada qual pudesse, após a grita inicial de todos querendo emitir sua opinião, pudesse “voltar a si” e que a coisa se acalmasse um pouco e produzisse  alguma lucidez a respeito.

Sem dúvida fui uma das que quis “vencer” o debate na marra. Só com um certo custo, cada qual dos “sabichões” foi retornando a uma certa serenidade que pudesse render algum novo saber a respeito.  A verdade é que (concordam?) sobre o outro e suas dúvidas, cada um de nós julga saber todas as respostas. Ou não? Eu, então, fora os assuntos do mundo da prática (quem me conhece já ouviu falar das minhas perenes impossibilidades), sou mestra em me sentir capaz de ter respostas para questões ligadas ao mundo das ideias e dos sentimentos (dos outros). A tal ponto que permito-me tergiversar para comentar uma fala minha numa conversa com uma sobrinha, que tem uma amiga muito da chata, que sabe tudo de tudo (e que, claro, me irrita por isso), sobre quem eu comentei: “Criaturinha desagradável esta sua amiga, pensa que sabe tudo, sobre todos e sobre tudo tem propostas e conselhos, uma chata! Ela precisa saber (e caí na risada): se alguém aqui sabe tudo, esta pessoa sou eu”.

Pois bem, voltando lá pra varanda, tomo, então, a palavra, na pretensão de sanar a dúvida cruel da minha amiga em busca da fração milagrosa que possa, em nome da ciência, lhe assegurar o seu grau de chance de agir ou se deixar assujeitar. Não sei se na hora da discussão eu consegui ser clara, mas quero aqui, resumidamente (até onde for possível) dividir o que penso a respeito e que foge completamente à matematização da vida, de suas circunstâncias e de seus sujeitos. Aliás, creio mesmo, que na hora não me fiz clara. Talvez por isso, querer saldar esta dívida, escrevendo a respeito.

Como estabelecer essa operação matemática? Qual percentual estabelecer para cada componente constituinte de nossa individualidade? Será que se dermos peso idêntico ao que trazemos, ao que adquirimos e ao que é de cada um estaremos sendo sensatos? Existirá esta equação de três elementos? Deveríamos pender mais para um – ou outros – lados? Qual ou quais, se for o caso?

Chegaremos algum dia a termos uma equação do tipo Individualidade = 30% de material inato + 30% de material adquirido por meio da cultura + 40% do próprio indivíduo? Mesmo que seja com outros números, seria possível?

Nunca, do meu ponto de vista! Há um erro conceitual, uma premissa, e equivocada, melhor dizendo, nessa hipótese.

O vício de matematizarmos a vida precisa ser combatido entre nós. Ele distorce até a nossa possibilidade de enunciarmos cada problema a enfrentar, já que na vida nem tudo pode ser visto com quantidade a ser somada, subtraída, multiplicada ou dividida. E sem o problema bem definido, como correr atrás das soluções? Já dizia Betinho, do Ibase, que, se partimos de um enunciado errado, vamos, não raras vezes, em direção completamente oposta daquela que poderia nos trazer alguma luz. A Matemática é um riquíssimo instrumento que nos permite analisar a realidade, mas nem tudo é quantificável.

Vejam meu ponto de vista. Bem sabemos que quando nascemos trazemos determinações, vindas em nosso DNA, fruto da hereditariedade e que constituem a nossa genética, única, pronta para chegar e enfrentar o mundo. Já aqui fora, recebemos toda a sorte de influências – da família, dos amigos, da mídia, da escola, das múltiplas experiências que vão dialogando com o nosso ser e nos configurando de um jeito – e não de outro (e que não é exato nem imutável). Nem é preciso repetir aquela velha história de que filhos, saídos do mesmo pai e da mesma mãe, criados “de maneira idêntica” acabam por se transformar em pessoas diferenciadas, muitas vezes antagônicas, sob alguns pontos de vista. O que quero enfatizar é que não existe esse terceiro elemento – O INDIVÍDUO – puro, que pode ter maior – ou menor – peso na configuração de nossa individualidade que se estabelece – esta que é nossa, de cada um e em função da qual agimos mais ou menos ativamente em nosso contexto histórico, empreendendo esforços mais (ou menos) assertivos em busca de uma nova sociedade. Em nossa individualidade não há como dividir quanto é vindo de pai e mãe e quanto vem vindo da vida mesma, vivida por cada um, da cultura, podemos dizer. E muito menos há o elemento indivíduo, independente dos demais. O individual, em si, é mistura, é composição entre o que trazemos e o que construímos. Em qual medida? Não sabemos. Não existe a hipotética equação composta de três elementos e mesmo naquela que aceito como verdadeira – a que conjuga o que trazemos e o que recebemos (inatismo + cultura) – o resultado é uma individualidade onde não há números precisos quanto ao grau de influência de cada qual. O indivíduo é o resultado da possível interação dos dois elementos. Interação essa que não pode ser exatamente medida e quantificada.  Se nada é totalmente determinado as nascermos, o espaço de acréscimo e transformação é indeterminado e sempre possível de ser alterado no decorrer da vida. Além do mais, a individualidade não é uma configuração limpa de outros, onde só caiba aspectos apenas do cada um. Ao contrário, é até difícil para eu me explicar, mas p cada um traz o outro em si. Ou seja: minha individualidade é carregada do que almejo, sinto, penso, trago em relação à Humanidade. O outro me compõe. O destino da Humanidade está em mim. Por mais que essa Humanidade seja meio esquisita, como diz uma grande amiga e por mais que cada um de nós não conheça de verdade e a fundo o outro, qualquer que seja ele.
Com este texto, por exemplo, quero interferir, no limite de minhas possibilidades, para que a minha amiga entenda mais amplamente a questão, sem nenhuma pretensão, de minha parte, de apenas eu saber coisas. Pelo contrário, pois sei que em outros tantos e fundamentais aspectos da vida ela pode colaborar comigo de maneira singular e verdadeira. Desejo, sim, que cada qual – ela, eu e quem vier a ler este arremedo de explicação de um ponto de vista – renove sua consciência de que sempre é possível ampliarmos nosso nível de consciência frente à realidade. Essa é a riqueza da individualidade de cada qual – ela não pode, de fato, ser medida, mas sempre pode ser ampliada e ganhar substância pelo estudo e prática diante das coisas do mundo e da gente própria.


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