A
TAL DA (INDESEJÁVEL) LÓGICA CARTESIANA
(Escrito em 23/1/2014)
Conversa na
varanda, na praia da infância, coisa boa de se viver. Roda de amigos, também de
infância, fresca inigualável em pleno janeiro mais que escaldante em outras
plagas – este é o cenário – antes do anoitecer, antes do surgir da lua que, com
certeza traria canções e mais canções, ao som de um violão e de nossas vozes,
agora menos potentes, mas com mais emoção ainda do que quando éramos jovens e
as entoávamos aqui, neste mesmo lugar, neste mesmo lugar de nós todos...
O tema, talvez
desnecessário dizer, era a atual conjuntura, as nossas inquietações diante da
barbárie um tanto naturalizada que se nos acomete em nosso cotidiano. A querida
amiga, defendendo seu ponto de vista diante do impasse em saber o que podemos
ou não fazer, ansiosa por saber até que ponto vai o seu poder em fazer mudar a
si mesma e ao mundo, exaltada (é o seu jeito, já tão conhecido: o seu tom na
conversa é sempre um tom acima), quer porque quer saber até que ponto existe
chance de intervenção por parte de cada um:
- “Eu não morro
sem saber, afinal de contas, qual o percentual que trazemos dentro de nós que
seja puramente genético, hereditário, qual o percentual cultural – que reúne
tudo que nos influencia nesta vida – e o que é puramente meu, individual, em
nome do que eu posso agir e fazer mudar a mim e ao mundo? Eu tenho uma parte
minha, só minha? Ora, porque se for coisa de 10%, eu sei que não posso quase
nada... mas e se for mais, eu posso continuar teimando em ir adiante com minha
teimosia.” Ou seja: para ela, haveria uma equação, composta de três elementos –
o que se traz ao nascer, o que se ganha na vida e o que é apenas individual, de
cada um).
Virgem santa!, eu
e alguns outros nos espantamos. Para que tais questões foram introduzidas no
debate? Quase um caos. Só não houve necessidade de serem introduzidas “questões
de ordem” e “inscrições à mesa” pelo bom senso de todos. Afinal, ali não era
espaço de nenhuma assembleia. Era coisa de irmãos mesmo, era rezar para haver
uma certa boa vontade e que cada qual pudesse, após a grita inicial de todos
querendo emitir sua opinião, pudesse “voltar a si” e que a coisa se acalmasse
um pouco e produzisse alguma lucidez a respeito.
Sem dúvida fui
uma das que quis “vencer” o debate na marra. Só com um certo custo, cada qual
dos “sabichões” foi retornando a uma certa serenidade que pudesse render algum
novo saber a respeito. A verdade é que (concordam?) sobre o outro e suas
dúvidas, cada um de nós julga saber todas as respostas. Ou não? Eu, então, fora
os assuntos do mundo da prática (quem me conhece já ouviu falar das minhas
perenes impossibilidades), sou mestra em me sentir capaz de ter respostas para
questões ligadas ao mundo das ideias e dos sentimentos (dos outros). A tal
ponto que permito-me tergiversar para comentar uma fala minha numa conversa com
uma sobrinha, que tem uma amiga muito da chata, que sabe tudo de tudo (e que,
claro, me irrita por isso), sobre quem eu comentei: “Criaturinha desagradável
esta sua amiga, pensa que sabe tudo, sobre todos e sobre tudo tem propostas e
conselhos, uma chata! Ela precisa saber (e caí na risada): se alguém aqui sabe
tudo, esta pessoa sou eu”.
Pois bem, voltando
lá pra varanda, tomo, então, a palavra, na pretensão de sanar a dúvida cruel da
minha amiga em busca da fração milagrosa que possa, em nome da ciência, lhe
assegurar o seu grau de chance de agir ou se deixar assujeitar. Não sei se na
hora da discussão eu consegui ser clara, mas quero aqui, resumidamente (até
onde for possível) dividir o que penso a respeito e que foge completamente à
matematização da vida, de suas circunstâncias e de seus sujeitos. Aliás, creio
mesmo, que na hora não me fiz clara. Talvez por isso, querer saldar esta
dívida, escrevendo a respeito.
Como estabelecer
essa operação matemática? Qual percentual estabelecer para cada componente
constituinte de nossa individualidade? Será que se dermos peso idêntico ao que
trazemos, ao que adquirimos e ao que é de cada um estaremos sendo sensatos?
Existirá esta equação de três elementos? Deveríamos pender mais para um – ou
outros – lados? Qual ou quais, se for o caso?
Chegaremos algum
dia a termos uma equação do tipo Individualidade = 30% de material inato + 30%
de material adquirido por meio da cultura + 40% do próprio indivíduo? Mesmo que
seja com outros números, seria possível?
Nunca, do meu
ponto de vista! Há um erro conceitual, uma premissa, e equivocada, melhor
dizendo, nessa hipótese.
O vício de
matematizarmos a vida precisa ser combatido entre nós. Ele distorce até a nossa
possibilidade de enunciarmos cada problema a enfrentar, já que na vida nem tudo
pode ser visto com quantidade a ser somada, subtraída, multiplicada ou
dividida. E sem o problema bem definido, como correr atrás das soluções? Já
dizia Betinho, do Ibase, que, se partimos de um enunciado errado, vamos, não
raras vezes, em direção completamente oposta daquela que poderia nos trazer
alguma luz. A Matemática é um riquíssimo instrumento que nos permite analisar a
realidade, mas nem tudo é quantificável.
Vejam meu ponto
de vista. Bem sabemos que quando nascemos trazemos determinações, vindas em
nosso DNA, fruto da hereditariedade e que constituem a nossa genética, única,
pronta para chegar e enfrentar o mundo. Já aqui fora, recebemos toda a sorte de
influências – da família, dos amigos, da mídia, da escola, das múltiplas
experiências que vão dialogando com o nosso ser e nos configurando de um jeito
– e não de outro (e que não é exato nem imutável). Nem é preciso repetir aquela
velha história de que filhos, saídos do mesmo pai e da mesma mãe, criados “de
maneira idêntica” acabam por se transformar em pessoas diferenciadas, muitas
vezes antagônicas, sob alguns pontos de vista. O que quero enfatizar é que não
existe esse terceiro elemento – O INDIVÍDUO – puro, que pode ter maior – ou
menor – peso na configuração de nossa individualidade que se estabelece – esta
que é nossa, de cada um e em função da qual agimos mais ou menos ativamente em
nosso contexto histórico, empreendendo esforços mais (ou menos) assertivos em
busca de uma nova sociedade. Em nossa individualidade não há como dividir
quanto é vindo de pai e mãe e quanto vem vindo da vida mesma, vivida por cada
um, da cultura, podemos dizer. E muito menos há o elemento indivíduo,
independente dos demais. O individual, em si, é mistura, é composição entre o
que trazemos e o que construímos. Em qual medida? Não sabemos. Não existe a hipotética
equação composta de três elementos e mesmo naquela que aceito como verdadeira –
a que conjuga o que trazemos e o que recebemos (inatismo + cultura) – o
resultado é uma individualidade onde não há números precisos quanto ao grau de
influência de cada qual. O indivíduo é o resultado da possível interação dos
dois elementos. Interação essa que não pode ser exatamente medida e
quantificada. Se nada é totalmente determinado as nascermos, o espaço de
acréscimo e transformação é indeterminado e sempre possível de ser alterado no
decorrer da vida. Além do mais, a individualidade não é uma configuração limpa
de outros, onde só caiba aspectos apenas do cada um. Ao contrário, é até
difícil para eu me explicar, mas p cada um traz o outro em si. Ou seja: minha individualidade
é carregada do que almejo, sinto, penso, trago em relação à Humanidade. O outro
me compõe. O destino da Humanidade está em mim. Por mais que essa Humanidade
seja meio esquisita, como diz uma grande amiga e por mais que cada um de nós
não conheça de verdade e a fundo o outro, qualquer que seja ele.
Com este texto,
por exemplo, quero interferir, no limite de minhas possibilidades, para que a
minha amiga entenda mais amplamente a questão, sem nenhuma pretensão, de minha
parte, de apenas eu saber coisas. Pelo contrário, pois sei que em outros tantos
e fundamentais aspectos da vida ela pode colaborar comigo de maneira singular e
verdadeira. Desejo, sim, que cada qual – ela, eu e quem vier a ler este
arremedo de explicação de um ponto de vista – renove sua consciência de que sempre
é possível ampliarmos nosso nível de consciência frente à realidade. Essa é a
riqueza da individualidade de cada qual – ela não pode, de fato, ser medida,
mas sempre pode ser ampliada e ganhar substância pelo estudo e prática diante
das coisas do mundo e da gente própria.
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