segunda-feira, 4 de julho de 2016


MINHA CASA – UM INÍCIO DE CHARLA SOBRE ELA

(Escrito em 10/03/2011 para o blog Dijaojinha)

Nasci na Avenida Sete de Setembro, também num sobrado, mas a casa da minha vida, para onde me mudei bem novinha, é a da Beira Rio.  Sobre ela, eu já disse em alguma outra oportunidade que também era um sobrado quase na esquina da Rua da Baronesa, que tinha, de um lado, a fábrica de goiabada Young, e, do outro, a casa de minha amiga Regina Sobrosa, cuja família morava ali com seus avós – dona Amélia e “seu” Jarbas. Mas não contei o resto. Bem na frente, lá em cima, dando pra rua, havia três sacadas, protegidas por lindas grades floreadas de ferro. As duas da esquerda eram as do quarto de papai, a da direita era do quarto do filho menor, enquanto fosse bebê. Seu dono, portanto, era variável. Eu mesma tenho a minha mais tenra lembrança da infância tendo a fralda trocada por Papai, durante uma noite, num dos dois berços que, até onde eu me lembro, eram tudo que ele tinha de mobília. A cada sacada chegava-se por sua respectiva porta de madeira, não inteiriça, mas partida em gomos que eram abertos um a um. A parte inferior das portas era feita de uma única peça enquanto a parte superior tinha vidros, protegidos por bambinelas, quase sempre permanecidas fechadas.

Nós pouco frequentávamos aquelas sacadas. Eu me lembro até que o chão de cada uma, feito de ladrilho hidráulico, estava até bem sujo quando eram abertas. É que o vento vindo do Rio era tão forte que as janelas e portas da casa, não só ficavam quase sempre fechadas (Ainda mais as que davam pra rua!) como ainda recebiam uma proteção extra – folhas de papel de jornal enroladas e enfiadas por baixo das portas, para evitar a intensa poeira, pronta para invadir o nosso território. Havia que se manter sempre tudo muito limpo, a casa era enorme, mantê-la limpa e encerada era bem custoso, ainda mais que eram tempos em que o brilho do assoalho era todo ele obtido pelo muque de quem passava o escovão de ferro, pesadíssimo.
Antigo escovão com que se encerava o chão.
 
 As irmãs mais velhas, que zelavam pelo asseio da casa, onde estava incluído com total prioridade o item brilho do chão, na tentativa vã de querer me educar, bem que tentaram que eu esfregasse aquele maldito instrumento pelo chão de algumas das salas, mas eu sempre conseguia me safar. Não sei como, mas sei que este foi motivo de briga – as irmãs mais velhas contra mim, que não demonstrava o menor interesse pelas coisas do lar, principalmente se isso significasse algum esforço físico... Daí deve ter vindo minha fama de ser diferente delas. Com o que eu concordo, por sinal.

As freiras confirmaram esta impressão quando nas aulas de Civilidade (era este o nome?), realizada às segundas feiras no auditório, diante das alunas de todo o turno, davam a nota a cada uma de nós; e a minha muitas vezes não era lá das melhores, pois esmalte nas unhas fazia perder pontos. Saia fora da linha idem. E o comentário desabonando a menina-moça vaidosa, vinha sempre, e bastante “educativo”: nem parece irmã de quem é.

Desde que tive a minha primeira casa, de verdade, e dela passei a cuidar fazendo de seus espaços uma alegre síntese do que vou vivendo e dos lugares por onde passo, sinto-me totalmente distanciada daqueles tempos em que em casa dos meus pais não tinha prazer em fazer brilhar seu chão.  Na verdade, foi a partir do começo do meu encontro comigo mesma, já fora de Campos, ao me imiscuir em meu próprio assoalho, e do poder que fui conquistando para minha vida e meus cantos é que o prazer de cuidar do que me diz respeito foi adquirindo sentido e esmero. Mesmo assim, devo confessar, há ausências que me marcam, e não é à toa que em frente à minha mesa de trabalho tenho um recorte, não sei tirado de qual lugar, onde eu leio: já olhei a cidade de cima e nem assim encontrei o meu lugar.

Lá atrás, na minha infância, a alienação era total quanto ao que era uma casa e como ela funcionava. Quando me vejo a mim e a amigos, hoje em dia, preocupados com o gasto de luz, com a conta do telefone, a economia da água, pedindo a filhos para pouparem energia elétrica, conversas ao telefone ou tempo no banho, fico pensando em como isso não existia em minha infância. Nunca vi uma conta desses serviços sobre nenhuma das mesas da casa para ser paga no final do mês. Era como se tudo que uma casa precisasse para funcionar existisse por si só, sem que se pagasse por isso. Ligava-se o interruptor e dava-se a luz, Tirava-se o telefone do gancho e o mesmo cumpria o papel que queríamos dele. Abria-se qualquer torneira e a água vinha intensa, jorrando farta sem freios. Na banheira, por exemplo, onde eu tomava demorados banhos, quando se tirava a tampa do fundo para dar por findado o delicioso aguaceiro pelo corpo, a força da água era tamanha que chegava a gritar ao seguir goela abaixo pelo cano. Era como se, tanto quanto raios e trovões, fosse também natural os itens de uma casa de classe média estarem ali para nos servir, sem custos. Se lá fora chove por obra e graça da natureza, dentro de casa, também nos chega sem custos o que é preciso para se viver bem. Ledo engano!


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