COVARDIA E AMARGURA ASSUMIDAS
(escrito em setembro de 2015, diante da
foto da criança turca morta)
Pode
parecer contraditório, já que gosto muito do jogo às claras, sem panos quentes
ou artifícios que escamoteiem a realidade. A franqueza sempre conta com minha
simpatia, mesmo que seja de difícil absorção ao primeiro gole e a gente tenha,
algumas vezes, que engolir seco. Mas é o que prefiro: o que é ser mesmo exposto
tal qual é. Aliás, como hoje, por mais que doa, está sendo mostrado aos quatro cantos
em nosso país: pensamentos à vista, dos ultraconservadores
aos "mais puros" esquerdistas. Todo mundo - ou quase todo mundo - nu,
sem disfarces. Isso dá segurança no trato com as pessoas, com os grupos, já que
demonstram claramente a que vieram, sem máscaras que possam disfarçar suas
reais intenções e maneiras de ser. Cobertos de arranjos e dissimulações, o
indivíduo e seus representantes dificultam o diálogo mais nítido com o outro.
Mas
para mim, a crueza da realidade tem limites. Já olhei, me emocionei, me senti
responsável, pequena, incapaz, torta de dor e de insignificância diante da foto
da criança turca morta à beira mar. Mas tal dureza não desce, não vence minha
incapacidade de absorver o mundo e suas infindáveis perversidades. "Curtir"
tamanha brutalidade é impossível para as minhas mãos envelhecidas e incapazes.
Compartilhar também se mostra a meus olhos totalmente inócuo, para dizer o
mínimo. Nem que eu queira, não consigo. Meu "adestramento" pela vida
afora não inclui tais capacidades.
Será
a clareza que a idade vai trazendo de que perdi o jogo? De que perdemos a luta,
de que somos mesmo irracionais diante da fragilidade do outro? De que a luta
não é pra valer? De que nossas armas são acanhadas, impotentes, perdedoras?
Aquela
musiquinha inesquecível que tia Sandra e tio Arthur ensinavam na Escola Viva
levando as crianças a entoarem em alto e bom som "eu sou capaz", era
um blefe. Estou envelhecendo e nada feito. Não somos capazes! Não somos capazes
de coisa nenhuma! Não mudamos nada! Aquele senhor, que nunca pôde ir de avião
ao Nordeste ver seus filhos, estar hoje ao meu lado no aeroporto, é uma
possibilidade de tipo gota no oceano. Seu momento de reeencontro afetivo deu
muito lucro por aí afora e por isso o jogo foi jogado. Sem o lucro, seu meio de
transporte continuaria sendo o ônibus demorado e cansativo.
Hoje
minha boca tem gosto de fel. O mundo é mesmo mau, como me ensinou uma velha
amiga. Movimento histórico em direção à justiça e humanização? Brincadeirinha
de mau gosto. Cantiga para boi dormir. Receita sem eficácia alguma!
Hoje
só vejo a criança morta. Ela não precisa estar aqui retratada. Ela me domina
por inteiro, lá no fundo da alma. Cores e possibilidades? Só as vejo quando me
distraio. E ainda tenho que carregar culpas por ter perdido tempo com
banalidades. Covardia e amargura é o mínimo que digo de meu estado de espírito
nesta manhã azul e clara só por fora.
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