Verissimo na veia
(Escrito entre 2012/2013)
Recebo agorinha de uma grande amiga uma mensagem, meio sentida, meio
jocosa, diante do que acabava de ver aqui pelo Facebook. Eis que constata – e
reparte comigo - que o e ex-companheiro, como se fosse possível apagar a vida
vivida, retirou todas as referências ali contidas do tempo em que estiveram
juntos. Talvez por mágoa, ela não explica bem, o cidadão levou tudo ao lixo,
fotos e toda e qualquer referência a ela. No lugar do vivido, a ausência. E
olhe que, segundo ela, foram tempos bem felizes antes do desgaste que levou ao
rompimento! Eu nem posso confirmar, pois ela vive longe, nem conheci o casal
enquanto tal e nem acompanhei o dito casamento. Mas não tenho razões para
duvidar do que me diz. E ela completa, usando palavras que não conseguem
esconder uma ponta de fina ironia: “Veja, minha amiga, o moço foi tão
ingênuo... Será que ele não sabe que por trás do que é visível está
sempre o essencial? Ele me apagou mas eu estou por lá. Ele e eu sabemos. A foto
que lá está ilustrando sua página foi recortada por minhas mãos. Mesmo que ele
tente negar, eu estou – e sempre estarei lá, subjacente...” E tascou uma gargalhada no final – KKKKKKKKKKKKKKKKK
Cá do meu canto, penso com meus botões: “É, minha amiga, meu líder,
Verissimo, tem sempre razão. Você se lembra daquele texto dele A FOTO? (*) Manda pro
rapaz... quem sabe ele aprende? Ou, pelo menos, ele se toca e muda a foto. Aí fica tudo
escondidinho mesmo, sem ser gato escondido com rabo de fora.
E, aí fui eu quem não resistiu e riu
um bocadinho... KKKKKKKKKKKKKKK
A foto (**)
Luís
Fernando Verissimo
Foi numa festa de família, dessas de fim de ano. Já que o bisavô estava morre
não morre, decidiram tirar uma fotografia de toda a família reunida, talvez
pela última vez. A bisa e o bisa sentados, filhos, filhas, noras, genros e
netos em volta, bisnetos na frente, esparramados pelo chão. Castelo, o dono da
câmara, comandou a pose, depois tirou o olho do visor e ofereceu a câmara a
quem ia tirar a fotografia. Mas quem ia tirar a fotografia?
-
Tira
você mesmo, ué.
-
Ah,
é? E eu não saio na foto?
O Castelo era o genro mais velho. O primeiro genro. O que sustentava os velhos.
Tinha que estar na fotografia.
-
Tiro
eu – disse o marido da Bitinha.
-
Você
fica aqui – comandou a Bitinha.
Havia uma certa resistência ao marido da Bitinha na família. A Bitinha,
orgulhosa, insistia para que o marido reagisse. “Não deixa eles te humilharem,
Mário Cesar”, dizia sempre. O Mário Cesar ficou firme onde estava, do lado da
mulher. A própria Bitinha fez a sugestão maldosa:
-
Acho
que quem deve tirar é o Dudu...
O Dudu era o filho mais novo de Andradina, uma das noras, casada com o Luiz
Olavo. Havia a suspeita, nunca claramente anunciada, de que não fosse filho de
Luiz Olavo. O Dudu se prontificou a tirar a fotografia, mas a Andradina segurou
o filho.
-
Só
faltava essa, o Dudu não sair.
E agora?
-
Pô,
Castelo. Você disse que essa câmara só faltava falar. E não tem nem timer!
O Castelo impávido. Tinham ciúmes dele. Porque ele tinha um Santana do ano.
Porque comprara a câmara num duty free da Europa. Aliás, o apelido dele
entre os outros era “Dutifri”, mas ele não sabia.
- Revezamento – sugeriu alguém. – Cada genro bate uma
foto em que ele aparece, e...
A idéia foi sepultada em protestos. Tinha que ser toda a família reunida em volta
da bisa. Foi quando o próprio bisa se ergueu, caminhou decididamente até o
Castelo e arrancou a câmara da sua mão.
-
Dá
aqui.
-
Mas
seu Domício...
-
Vai
pra lá e fica quieto.
-
Papai,
o senhor tem que sair na foto. Senão não tem sentido!
-
Eu
fico implícito – disse o velho, já com o olho no visor.
E antes que houvesse mais protestos, acionou a câmara, tirou a foto e foi
dormir.
(**) Extraída
do livro “Comédias para se ler na escola”, da Editora OBJETIVA, 2001, p.37
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