CURA HETERO
(escrito na primavera de 2015)
Minha amiga ELA
(engraçado, mas é este mesmo o apelido da adorável criatura) me pega pelo braço
e sai conversando comigo, mais parecia um passarinho daqueles que piam, piam,
piam, num mesmo tom repetitivo, sem fim. Canto contundente! A agonia parecia
querer fugir da gaiola; e nada melhor do que palavrear comigo naquela manhã sob
as árvores, nas trilhas aqui de perto de casa.
É que surgiu –
armadilha das boas –, me conta ELA, um homem já de uma certa idade em sua vida.
Sedutor, gogó causídico, todo mimos, trouxe-a para junto de si, carregadinho de
afeto e doação. ELA foi que foi, de cabeça, mergulhou fundo, se viu apaixonada
e, pronto, a razão foi pras cucuias. Mar de rosas total!
Mas, o tempo é o senhor
da razão, ela havia aprendido essa lição já fazia um tempo mais que graúdo para
fixar o entendimento. Mar é mar, rosas são rosas. Convive daqui, convive dali,
viu que o moço charmoso de idade avançada era mais difícil do que problema de
Matemática do antigo exame de admissão, daqueles em que num tanque entra um
tanto de água por segundo enquanto um outro tanto sai pelo ralo. E a vítima tem
que saber o tempo para a água se esvair todinha, sem deixar um pingo a ser
visto a olho nu. Água que, com certeza, fosse hoje em dia, diante da crise
hídrica, ainda haveriam de dela exigir que buscasse um meio para
reaproveitá-la, depois de todas as operações feitas para chegar a um resultado
que, nem ao menos, sabia estar certo...
O sapato, a roupa, o
chapéu, a vestimenta toda, essa é a verdade, apertaram-lhe a tal ponto que
sumiu pelo mundo, deixando para trás o seu amor com suas esquisitices e manias,
a esta altura já com a porção sapo a lhe tomar a fisionomia inaugural de
príncipe quase que por inteiro.
Quando sentamos no
banco da pracinha, ELA estava no ponto em que me contava que, mesmo à
distância, tinha um senso de proteção direcionada àquele por quem se apaixonara
um dia. De longe, eu bem a entendi, as chatices ficavam menos nítidas e as
rememorações eram apenas do amor que recebera, só coisinha boa, os agrados de
todo tipo.
Ficou aturdida. Não
sabia como resolver o impasse. Livre não conseguira ficar, pois que ainda se
sentia completamente aprisionada, como que responsável pelos fracassos, dúvidas
e tormentos do senhor do amor total. Era só ele precisar e lá estava ela a lhe
amaciar a queda com seu colo de alecrim. Tal qual em romance água com açúcar, o
poder de seu poder era maior do que a força da realidade. Viu, com certeza
muitas vezes junto comigo, muita comédia romântica americana na década de 60.
O maior impacto da
conversa com ELA, no entanto, ainda estava por vir. Foi quando ela, meio
tímida, agnóstica que sempre foi, como eu, olha pra mim e diz que chegou a
pensar que o tal amor idoso era como que um retorno de seu pai, a quem ela dera
pouca atenção, quando de sua velhice. Chegou a imaginar que o velho do amor
recente era aquele outro velho reencarnado a lhe cobrar atenção e a quem ela teria
que dar afagos e compreensão ilimitada.
Felizmente, eu estava
bem alimentada (a conversa foi após o nosso farto café com tapioca do Mercado,
café preto e frutas) e eu estava bastante inteligente na hora:
“- Mas, ELA, quando seu
pai morreu, o seu novo velho já estava neste mundo, vivinho da silva. Não deu
tempo para o velho pai subir aos jardins da preparação e voltar reencarnado
para cá. A interseção de tempos é mais do que palpável. Tá biruta de vez,
criatura? Isso mais parece encosto de algum espírito de porco bem mais jovem e
esperto – e deste mundo daqui mesmo – querendo abusar de seu bom coração.”
Silêncio.
Segundos depois, ELA:
“- Menina, o que a paixão ou a culpa ou sei lá qual sentimento faz com a gente,
não é? Sai de mim! Me erra, pai fake! Aprendi a lição! Tem muita água que fica
mais tempo no tanque entupido, mas um dia ela escoa, todinha. Mesmo que não se
saiba fazer as contas do tempo perdido para a ação se dar por concluída.”
E agora abraçadas, deixaram o banco de madeira e seguiram a caminhar.
Eu também queria um tempo para contar as minhas histórias pra ELA...
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