segunda-feira, 23 de novembro de 2015



JOEL, O MOTORISTA[1]
Nem sei quantas vezes já contei o caso do motorista que me levava para visitar escolas durante um certo tempo em que tal tarefa fazia parte de minhas atribuições como coordenadora pedagógica de um determinado projeto de leitura.  Foi um tempo, um longo tempo, anos, em que conheci o Rio de Janeiro em suas dimensões as mais variadas, em suas circunstâncias as mais tranquilas e ameaçadoras, as suas  regiões, todas elas, as mais distantes, o “Rio Profundo” mesmo, pois que ele existe, bem ali do outro lado da Ponte. Uma vez, me lembro bem, a escola era tão distante, mas tão distante mesmo, que, depois de muito avançarmos por pequenas vielas e estradas pra lá de estreitas, demos de frente com um morro alto bem verde, bonito de dar gosto, e eu, sem avistar nada por ali que se parecesse com um prédio escolar, virei para rapaz e disse, gracejando: “Joel, ache logo a escola, porque o Rio está acabando...”
O Joel era uma figura singular: calado, sempre na dele, muito simpático, cara e gestos de boa gente, mas mais passivo do que se poderia desejar. Pelo menos do que eu poderia apreciar, na minha produtividade e dinamismo que conduzem meu cotidiano, todo ele feito de ação e organização, aproveitando brechas e situações que possam se somar em prol de algo que valha a pena. Esperar para mim é quase dos males o pior.  Tenho meus ócios, criativos ou não, adoro ficar de preguiça em meus breaks, muitas vezes mais demorados do que deveriam e por mim mesmos estabelecidos e usufruídos a valer. Mas, trabalho é trabalho, é ação, é criação, é pensamento, é produção, é vida – ativa e efetiva.
O costume era Joel me levar a cada escola e aguardar o tempo necessário – uma, duas ou mais horas – até eu me desencumbir da tarefa junto aos professores. O prazer era tanto que um dia, me lembro bem, eu saí da escola, com a adrenalina a mil, pela graça dos momentos ali vividos em conversa com os professores, mal abri a porta, fui logo dizendo, com a minha costumeira espontaneidade: “Ainda morro disso, Joel!” (ao que ele riu, naturalmente, imagino, por associar meu dito ao significado mais usual da expressão ...)
Esse mesmo Joel, o calminho Joel, numa certa feita, me viu voltar pro carro mais animada ainda do que de costume. Pois lá vim eu, como que embriagada pelo prazer do trabalho e, ao ver o motorista ali, quietinho, horas após ter me deixado naquele mesmo portão, ele, ali, praticamente na mesma posição em que o deixei, incomodada, acesa, inquieta, a ele me dirigi, dando origem ao seguinte diálogo:
- Joel, você não gosta de fazer alguma coisa enquanto me espera? Ler o jornal, que tal?
- Nada, Dona Carmen...
- Um livro? Ler um livro? Fazer palavras cruzadas, Joel?
- Que nada, Dona Carmen...
- Ouvir música, você não gosta? Caminhar aqui por perto?
- Gosto, não, Dona Carmen...
- Huuuum, fico incomodada, você nem vai ali tomar um cafezinho (apontando para o boteco da esquina)?
- Vou, não... sabe de que gosto mesmo, Dona Carmen?
Eu me aprontei toda, cheguei a endireitar o corpo, me postar mais pra frente, como que para os ouvidos captarem logo, o mais rápido possível, o que ele finalmente diria como ação que indicasse um mínimo de iniciativa de sua parte. Foi quando, enquanto eu ainda me ajeitava, pude ouvr:
- Sabe, dona Carmen, eu gosto mesmo é de esperar...
Foi a deixa para voltarmos em silêncio até minha casa, em Niterói...
Nada a fazer. Era morder minha língua, aquietar minha “neurose de atividade para todo e qualquer cidadão” e reafirmar, baixinho: “Que seria do amarelo se todos gostassem do azul?”
 

 Comentário meu mesmo, poucas horas depois de escrito o texto:
LUCIDEZ MOMENTÂNEA - QUEM SOU EU PARA RECLAMAR DE JOEL SE TUDO QUE FAÇO NA MINHA VIDA É FAZER TUDO QUE GOSTO, UM POUCO MAIS, UM POUCO MENOS, COM UM POUCO MAIS DE ALEGRIA OU COM UMA CERTA MELANCOLIA, APENAS ESPERANDO?




[1] Nome fictício.

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